Autor Data 19 de Fevereiro de 2006 Secção Policiário [762] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2005/2006 Prova nº 4 Publicação Público |
SMALUCO NO TRIBUNAL Inspector Boavida Há perto de três semanas
que o detective Smaluco
passa quase todos os seus dias no Tribunal Criminal da Comarca de Lisboa para
testemunhar em dois processos-crime por homicídio, que resultaram de casos em
que esteve directa mas involuntariamente envolvido.
No primeiro processo, o seu depoimento foi determinante para a libertação de
uma jovem que havia sido injustamente condenada a 18 anos de prisão efectiva por um crime que não cometeu e para o
consequente castigo penal, aplicado de forma agravada, a um seu amante e
verdadeiro criminoso (Anabela Monteiro e Ricardo Gomes, recordam-se?). No
outro processo, as declarações de Smaluco
contribuíram para que Natália Vaz, sua ex-companheira e mulher amada, pudesse
ouvir o delegado do Ministério Público pedir a pena mínima para o crime de
que é acusada, nas alegações finais do seu julgamento, cuja sentença será
lida dentro de algumas semanas. Entre um processo e outro, Smaluco teve tempo ainda para deambular sem pressas pelos
corredores do tribunal e assistir dolente a diversas sessões de outros
julgamentos. Numa delas quase adormeceu a ouvir alguns curiosos diálogos
entre o delegado do Ministério Público, arguido e testemunhas de um
processo-crime por ofensas corporais e homicídio qualificado praticados na
pessoa de um jovem adolescente, que decorreram mais ou menos assim: – Diz o sr.
Jorge Costa que ao entrar em sua casa deparou com a vítima, já sem vida,
caída no hall de entrada. Afirma ainda que antes de
entrar no prédio avistou na rua dois dos seus vizinhos e que ambos lhe
pareceram muito nervosos e agitados. Quer concretizar melhor? – O meu vizinho do piso de
cima, o sr. Amílcar Gomes,
tem perto de 35 anos, vive no prédio há pouco mais de quatro meses. É um
escritor e poeta assumidamente homossexual, tem normalmente uma postura calma
e tranquila, e vi-o sair a correr do prédio, ainda a abotoar o colarinho e a
ajeitar o nó da gravata, quando me encontrava já no cimo da calçada. De
seguida, alguns momentos depois, quando me encontrava junto à porta do
prédio, vi sair esbaforido o meu vizinho do andar de baixo, o sr. Afonso Rizzo, desgrenhado e
ainda a vestir o casaco, que quase chocou comigo e nem desculpa pediu. Mas o
que mais me incomodou foi ter de subir mais uma vez as escadas a pé até ao
segundo andar, depois de ter caminhado calçada acima até à praceta onde moro,
porque o raio do elevador do prédio continua desactivado
por avaria. Quando cheguei a minha casa, abri a porta e dei de caras com o
jovem Pedro Montes, de “T-shirt” rasgada e de calças caídas, tombado no chão,
já sem vida, com sinais evidentes de luta e agressão física, atingido com um
tiro na cabeça. A arma, de minha propriedade, uma velha “colt”
32 herdada de meu pai, que há muito tinha guardado numa das gavetas do
pequeno móvel de entrada, carregada para responder a eventuais assaltos, cada
vez mais frequentes na zona onde vivo, estava caída no chão, ao lado do
cadáver. – Tem ideia da hora em que
descobriu o cadáver? – Tenho. Passava muito
pouco do meio-dia. Quando estava a cerca de 15 metros do cimo da calçada,
ouvi a primeira das 12 badaladas; e quando cheguei junto à porta do prédio
onde vivo estava a soar o último toque do sino. Embora a pressa fosse muita,
subi as escadas muito devagar por que as minhas cinquentenárias pernas já não
são o que eram. Tinha o meu aluno Pedro Montes à espera para a habitual
explicação das sextas-feiras e eu já estava com o atraso de cerca de uma
hora. Encontrava-me, no entanto, tranquilo por ele ter desde há muito uma
cópia da chave da porta de minha casa, por ser normal e frequente o meu
atraso. Nas manhãs de sexta-feira, a aula que dou na faculdade termina por
volta das dez e meia, mas acabo sempre por me atrasar. Porém, e apesar de
tudo, desta vez cheguei mais cedo do que o habitual. Eram 12 horas e 7
minutos quando liguei para a polícia, conforme se pode comprovar nos autos. (…) – Sr. Amílcar Gomes, este
tribunal gostaria de saber o que aconteceu consigo no dia do crime. A que
horas saiu de casa, para onde foi e porque aparentemente se encontrava muito
mais agitado do que habitualmente. – Meu caro doutor, nesse
dia tinha encontro marcado com um grande amigo meu ao meio-dia, numa
esplanada das redondezas, quando de repente comecei a ouvir as badaladas do
sino da igreja. O encontro era demasiado importante para perder tempo e corri
imediatamente escadas abaixo em direcção à rua.
Soube depois que o jovem Pedro Montes terá sido assassinado mais ou menos a
essa hora. – Só mais uma pergunta, sr. Gomes. Não se recorda de ter ouvido ou sentido sinais
de discussão, gritos, barulhos de luta ou de agressão física no piso
inferior, antes de sair de casa?... Um tiro, por
exemplo?! – Não. Nada, nadinha, sr. doutor! A manhã estava calma
e eu estava completamente absorto no meu trabalho, desde as nove da manhã.
Tinha em mãos uma nova obra que penso publicar muito brevemente e foi exactamente para tratar de pormenores da edição do livro
que saí de casa nesse dia fatídico ao meio-dia. (…) – Sr. Afonso Rizzo, este tribunal gostaria que confirmasse o seguinte:
segundo as suas declarações à Polícia Judiciária, o senhor passou toda a
manhã a trabalhar e só saiu de casa exactamente ao
meio-dia, não ouviu qualquer disparo ou ruídos “estranhos” no andar de cima e
lembra-se apenas de se ter cruzado com o seu vizinho Jorge Costa à porta do
prédio onde mora. – É verdade. O meu relógio
está quase sempre atrasado e regulo-me normalmente pelo sino da igreja, cujo
som ninguém pode deixar de ouvir, tal é o barulho ensurdecedor que ele faz.
Creio que a única pessoa no prédio que tem dificuldade em ouvir as suas
badaladas é o vizinho do terceiro andar, que é incrivelmente surdo. Bom,
assim que ouvi a primeira badalada do sino deitei pernas ao caminho e
dirigi-me à baixa, onde tinha um compromisso inadiável com um importante
galerista. (…) – Sr. Aníbal Pinto, o
senhor é dono do prédio onde se deu o crime e habita o seu rés-do-chão.
Assegura que saiu de casa cedo, tendo regressado por volta das 15 horas,
depois de um telefonema do sr. Amílcar Gomes que o
pôs ao corrente do crime. Afirma ainda que há muito desconfiava das razões da
visita semanal do jovem assassinado. Importa-se de confirmar estas
declarações e de descrever o tipo de imóvel de que é proprietário e a
personalidade dos seus inquilinos? – Com todo o gosto. Segundo
se consta, o jovem estudante muito raramente transportava consigo livros ou
cadernos escolares, facto que foi, por algumas vezes, objecto
de conversa entre mim e o meu inquilino do terceiro andar, que é uma pessoa
muito astuta, sensata e perspicaz. Tanto eu como os restantes moradores do
prédio, ao todo quatro homens solitários e pouco dados a grandes conversas
com a vizinhança, temos vidas recatadas de uma rotina quase confrangedora. Eu
sou comerciante, saio por volta das oito horas da manhã e regresso
normalmente por perto das nove da noite. O meu inquilino do primeiro andar é
pintor, passa grande parte do dia em casa, nunca recebe visitas e não se lhe
conhecem quaisquer aventuras amorosas. Quanto ao professor Jorge Costa, nunca
se soube que tivesse qualquer relação afectiva e há
muito que a sua vida tem sido comentada em surdina neste velho prédio de quatro
pisos, que “vive” quase paredes-meias com a igreja. Smaluco acordou assarapantado com o burburinho
que, de repente, se gerou no tribunal e mal percebeu o nome que o delegado do
Ministério Público pronunciou quando pediu com veemência a condenação de um
dos depoentes como autor do crime que transitava em julgado. Mas nem
precisava ouvir… O leitor não estava lá e sabe muito bem quem disparou a arma
assassina, não é verdade? |
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© DANIEL FALCÃO |
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