Autor

Inspector Boavida

 

Data

6 de Janeiro de 2008

 

Secção

Policiário [859]

 

Competição

Campeonato Nacional e Taça de Portugal – 2007/2008

Prova nº 2

 

Publicação

Público

 

 

SMALUCO EM LONDRES

Inspector Boavida

 

Smaluco está triste, abatido. Natália, a mulher da sua vida, acaba de ser condenada a 13 anos de prisão por crime de homicídio. Ela, mais do que nunca, precisa do seu conforto, mas ele sente-se debilitado. Os acontecimentos que precederam o julgamento tinham sido arrasadores. Ele necessita de tirar pelo menos umas semanas de descanso, para recuperar forças e ganhar alento. Já tem o destino escolhido: Londres! É lá que vive o seu companheiro de infância e ex-colega na Judiciária, João Horta, Orton para os amigos em homenagem ao escritor britânico cruelmente assassinado em Agosto de 1967. Smaluco e Orton eram admiradores do dramaturgo e projectaram ir nesse mesmo ano a Londres, quando o autor fora premiado pelo jornal Evening Standard e pela revista Plays and Players. Mas a tropa não deixou. Eles tinham ido às sortes meses antes e haviam ficado apurados. Naquele tempo, sair do país era uma missão impossível para dois jovens mancebos em idade de cumprir o serviço militar.

Tinham ambos o mesmo sonho, a mesma paixão: os palcos do teatro. Mas as voltas da vida levaram Smaluco e Orton a candidatarem-se à Polícia Judiciária, logo que terminaram a comissão de serviço em Angola. Estiveram curiosamente no mesmo aquartelamento e na mesma cidade, Luanda, e o facto de terem servido na Polícia Militar abriu-lhes as portas da “Judite”. Inscreveram-se em 1972, entraram para os quadros dois meses antes da Revolução de Abril e em 1975 estagiaram na Scotland Yard em regime de contexto real de trabalho, acompanhando a investigação dos mais diversos e complexos crimes. Foram seis meses verdadeiramente inesquecíveis, de arrasar. Se não fossem as terríveis saudades de Natália, tudo teria sido perfeito para Smaluco! As noites eram passadas quase todas em claro, entre copos e tertúlias teatrais, mas nunca faltou a nenhum compromisso. A pontualidade britânica era cumprida quase in extremis, mas foi sempre respeitada.

Um dia, Smaluco quase que se atrasou. O encontro estava marcado para as oito no Royal Court e ele chegou mesmo em cima da hora. Entrou na sala afogueado e sentou-se. Estava cansadíssimo. Há três dias que não pregava olho. Orton suspirou de alívio quando viu chegar o amigo e entregou-lhe uma brochura para as mãos: “Loot”. Um banco fora assaltado e suspeitava-se que o dinheiro estava escondido em casa dos McLeavy, que faziam o luto da matriarca da família, falecida na véspera aos braços da enfermeira McMahon, após doença prolongada O principal suspeito do saque era Dennis, um amigo do filho dos McLeavy, Harold. Quem dirigia as investigações era o inspector Truscott da Scotland Yard. Foram feitas algumas buscas à casa e, após breves inquirições a Dennis, à enfermeira McMahon e aos membros da família McLeavy, estava descoberta a verdade: Harold e Dennis eram cúmplices no roubo. O pai McLeavy, um respeitável leigo católico, não queria acreditar no que ouvia.

O jovem descendente dos McLeavy tinha tido uma esmerada educação, segundo os mais sagrados princípios da religião católica, e era membro dos Filhos da Divina Providência. Mas isso não convenceu ninguém, até porque a enfermeira já tinha definido muito bem Harold. “O conteúdo da cómoda do quarto dele é um libelo da sua maneira de viver. Não é só armas, mas até equipamento de planeamento familiar. É preciso uma dispensa papal para lhe limpar o pó”, disse a McMahon.

Já quanto ao Dennis, era conhecido como um jovem devasso, frequentador assíduo dos bordéis londrinos de pior reputação. Quanto a questões de sexualidade, Dennis era tido como um “hetero” não fundamentalista, repartindo a sua “cama” com o amigo Harold, a enfermeira McMahon e outras cinco mulheres. No que respeita à sua profissão, já tinha tido os mais diversos empregos e naquela altura trabalhava como cangalheiro numa agência funerária contígua ao banco assaltado.

“O dinheiro está na urna”, segredou Orton. O seu palpite estava certo: o produto do saque foi descoberto na urna que continha as vísceras da falecida senhora McLeavy, que havia sido embalsamada por vontade expressa na hora da morte. Antes disso, o caso tomara proporções quase surreais. Para além da confirmação dos autores do assalto ao banco, concluíra-se que a matriarca dos McLeavy tinha sido assassinada. Smaluco não registara aquela reviravolta nas investigações. O seu cansaço era tal que o sono ia e vinha aos soluços, forçando-o a cair nos braços de Morfeu por espaços curtos e intermitentes. Por essa razão, não soube sequer quem tinha cometido o homicídio e só muito mais tarde teve conhecimento de que, por força das palavras de John Orton, o inspector Truscott acabou por ficar muito mal na fotografia. Quando a cortina correu sobre o acontecimento, quem ia a caminho do cárcere, algemado e arrastado por um polícia de nome Meadows, reclamando a sua inocência, era o pai McLeavy!

Após a sua aposentação antecipada da Polícia Judiciária, aos cinquenta e poucos anos, João Orton, o ex-colega e amigo de Smaluco, assentou arraiais em Londres, onde ainda hoje faz grande sucesso como detective privado. Mesmo na sua qualidade de free-lancer, ele é regularmente convidado a colaborar com a Scotland Yard, principalmente quando a polícia britânica se vê em apuros para resolver alguns dos casos mais delicados.

Smaluco já reservou a passagem. O seu voo está marcado para as próximas horas. Resta-lhe apenas tempo para fazer algumas compras, entre elas um livro para ler durante a viagem, no qual se publica na íntegra, e em português, todo o caso vivido na casa dos McLeavy, o que facilita a sua réplica no espaço lusófono. E, se forem cumpridos determinados procedimentos, tal facto não é punível. Na pista, o Boeing 707 espera por Smaluco. No regresso, daqui a umas semanas, ele promete explicar melhor o caso aos leitores do PÚBLICO. Até lá…

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO