Autor Data 22 de Fevereiro de 2009 Secção Policiário [918] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2008/2009 Prova nº 5 Publicação Público |
SMALUCO E A MORTE DO EMPRESÁRIO ACALORADO Inspector Boavida Passava
muito pouco das dez e meia da manhã quando o telefone tocou. Smaluco ouviu uma conhecida voz grave e límpida que se
exprimia num inglês irrepreensível. “Olá, daqui fala Gordon Brown”. O velho detective ficou perplexo. Depois de um breve silêncio,
recompôs-se e desatou largas e sonoras gargalhadas. Quem estava do outro lado
da linha era um emigrante português, exímio em imitações e disfarces, que
forma uma dupla imbatível com João Horta. Ele fez saber que o seu parceiro
estava a caminho do aeroporto para apanhar o avião com destino a Lisboa.
Tinha acontecido um grave problema com o primo Ricardo, um bem
sucedido empresário conhecido entre os seus pares por “O Acalorado”. A
razão da alcunha do primo de João Horta reside no facto de trabalhar sempre
de janela aberta, quer de Verão, quer de Inverno, faça chuva ou sol, frio ou
calor. O seu escritório fica instalado na sede da empresa, no piso térreo de
uma grande vivenda, no Restelo, onde as rotinas há muito ganharam raízes.
Trabalham ali dez pessoas e ele é invariavelmente o primeiro a chegar. Às
oito em ponto lá está “O Acalorado”, de janela aberta, voltado para o jardim
público que cerca o quarteirão. A sua secretária, a menina Vanessa, que
trabalha numa sala contígua ao gabinete do empresário, é sempre a segunda a
chegar, por volta das oito e meia. Os restantes empregados, que se dividem
pelas instalações da sede, chegam pontualmente às nove da manhã. Horta
chegou a casa de Smaluco por volta das sete da
tarde. Este, depois de o ajudar a carregar meia dúzia de pesadas malas, até
ao quarto andar onde mora, ficou a saber o que acontecera ao primo do amigo.
Alguém tinha disparado sobre “O Acalorado”. Horta estava ao telefone com o
primo quando, de súbito, ouviu um disparo, seguido do barulho de um corpo a
cair no chão. Depois fez-se um silêncio profundo. Ele tem a certeza das horas,
porque nessa altura o Big-Ben soou e olhou para o
relógio da torre. Eram oito da manhã. Telefonou logo para a Polícia
Judiciária (PJ), e, duas horas mais tarde, deram-lhe conta da triste notícia.
Apanhou o avião e, mal aterrou na Portela, seguiu para a PJ, onde estivera
até há pouco tempo. João
Horta conseguiu recolher um relatório circunstanciado de tudo o que se
passara durante o primeiro dia de investigações, documento que passou para as
mãos de Smaluco. O inspector
encarregado do caso era um velho amigo de ambos. Depois de um belo jantar
regado com bom vinho, durante o qual mataram saudades de alguns momentos
vividos o ano passado em terras de Sua Majestade, Horta adormeceu no sofá da
sala e o seu amigo detective aproveitou para ler o
relatório do crime do empresário “acalorado”. Estava lá tudo, tintim por
tintim. Nada escapava ao inspector Bernardo. Ele
era claro e exaustivo na elaboração dos seus relatórios e fora diversas vezes
distinguido por essa razão. Tudo se passara da seguinte forma: Após
receber o telefonema de João Horta, a Judiciária seguiu de imediato para a
sede da empresa, tendo chegado breves momentos antes da secretária de Ricardo
Esteves. O empresário estava caído no chão do gabinete, atingido mortalmente
por um tiro nas costas. O seu telefone pessoal de rede fixa, cujo número era
apenas conhecido por meia dúzia de pessoas mais intimas,
que estava colocado numa estante afastada uns metros da mesa de trabalho,
junto à porta de entrada, encontrava-se fora do descanso, dependurado pelo
fio. Não havia mais nada de interessante para a investigação, a não ser uma
enorme poça de sangue que cobria a espessa alcatifa. Vanessa, que acompanhara
a brigada da PJ, sentiu-se mal e desmaiou. Depois
de recomposta, a menina Vanessa foi a primeira a ser ouvida. Disse ela que
chegara, como sempre, às oito e meia. Nada notou de diferente, a não ser a
presença dos agentes da PJ. No dia anterior, o empresário tivera uma longa
conversa com ela, tendo-lhe confidenciado que a conjuntura
económico-financeira internacional estava a ter graves reflexos no desempenho
da empresa, o que o levaria a alienar algum do seu património e a tomar
outras decisões não desejáveis. A sua preocupação era a salvação da empresa e
a defesa dos postos de trabalho dos empregados mais dedicados. Mas não podia,
porém, manter toda a gente, razão pela qual iria dispensar no dia seguinte
três dos seus colaboradores: o Jorge, o Gustavo e o Fonseca. Quando
foi ouvido, o Jorge estava muito nervoso. Admitiu que já sabia que ia ser
despedido. Cruzou-se com o Gustavo no café que fica a poucos metros da
empresa e ambos lamentaram a sua sorte. Tinham filhos menores e as respectivas mulheres estavam desempregadas. Combinaram
pedir uma audiência ao empresário, para apelar à sua compreensão. O Gustavo
confirmou que estivera com o Jorge no café. Chegara muito antes dele, ainda
não eram oito horas. A manhã estava calma. Só se ouvia o chilrear da
passarada. Cerca de quinze minutos depois, apareceu o colega. Estavam
decididos a pedir ao patrão que os não despedisse. Tinham ambos perto de 50
anos e naquela idade é difícil encontrar um novo emprego. O
Fonseca chegou à sede da empresa cerca de 15 minutos depois das nove e
preparava-se para ouvir um valente sermão do patrão. Mas já estava por tudo.
Ouvira dizer que “O Acalorado” queria despedi-lo. Portanto, paciência. O
desemprego não o preocupava muito. Era novo e havia de arranjar trabalho
nalgum outro lugar. Confessou que embirrava com o empresário e que este
também não simpatizava muito com ele. Enfim, amor com amor se paga. Só dava
por mal empregue o tempo que trabalhou naquela empresa. Já estava farto de
engolir sapos. Não ia ter muitas saudades do “acalorado”. Pelo contrário, era
bom saber que ele deixara de ter calores. Homens assim,
disse ele, não fazem cá falta nenhuma. Pelo
registo de comunicações do telefone pessoal do empresário pôde concluir-se
que ele havia recebido nessa manhã uma chamada de Londres, às oito. Na
véspera tinha falado para casa de Vanessa, às oito e meia da noite. Esta
pediu desculpa por ter omitido o telefonema, dizendo que se tratava de um
assunto de foro íntimo que julgou não ser relevante para a investigação. No
telefone móvel do empresário, havia registos de duas chamadas não atendidas, efectuadas pelos telemóveis do Jorge e do Gustavo, às
sete e às sete e meia da tarde do dia anterior, respectivamente.
Uma mensagem escrita fora recebida pelo empresário, às nove da noite, onde se
dizia: “Deixa a rapariga em paz, senão”. Desconhecia-se a identidade do dono
do telemóvel utilizado. O
detective Smaluco não
descortinou nada que pudesse denunciar alguém de envolvimento no homicídio,
mas, após uma segunda leitura do relatório, ficou a saber tudo. E o leitor? |
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© DANIEL FALCÃO |
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