Autor Data 15 de Outubro de 2009 Secção Competição Problema nº 3 Publicação O Almeirinense |
A MORTE DO GÉMEO FARIA Inspector Boavida O
subchefe Pinguinhas aproveitou a calma que reinava na esquadra para se
deliciar naquela manhã com um jesuíta
na pastelaria Suíça. No regresso, avistou, no largo de São Domingos, um dos
gémeos Faria, que caminhava em direcção a casa,
vindo do lado dos Restauradores. Ele não tinha memória de conhecer duas
pessoas tão parecidas e, ao mesmo tempo, tão distintas. O Pedro e o Paulo
eram fisicamente iguais, mas tinham comportamentos e opções de vida díspares.
O primeiro gozava da fama de viver de expedientes, acumulando processos
judiciais por crimes de falsificação e de abuso de confiança, que ameaçavam levá-lo
à cadeia. O segundo era considerado um dos mais promissores artistas
plásticos da sua geração. Pedro
era um pinga-amor. Teve inúmeras e
sucessivas namoradas, envolveu-se com várias mulheres ao mesmo tempo, ficou
noivo quatro vezes e declarou-se apaixonado outras tantas vezes. Este enredo
amoroso valera-lhe, desde muito novo, o título de plano boy. Ainda adolescente, enamorou-se de uma trintona loira que morava nas
imediações da escola e depressa abandonou os estudos para sempre. Após o
liceu, nem faculdade nem trabalho. A sua vida tinha sido sempre e só
mulheres: hoje uma, amanhã outra… ou outras! Ultimamente corriam rumores de
que andava envolvido com a mulher de um amigo do norte, sem que isso lhe
merecesse qualquer preocupação, ou não fosse ele um homem insensível e sem
escrúpulos. Paulo,
ao contrário do irmão, era incapaz de contribuir para o sofrimento de quem
quer que fosse. A sua extrema sensibilidade, aliada a uma simpatia inata, era
reconhecida por todos os que privavam com ele. Nos seus contactos, em
qualquer circunstância, mesmo nos momentos menos alegres ou mais infelizes,
tinha sempre um sorriso nos lábios. Era exactamente
isto, e o modo de vestir, que o distinguia do irmão aos olhos dos outros. Os
seus dias começavam cedo, quase de madrugada, e eram feitos de intenso
trabalho e de permanente estudo. Era tão grande a dedicação à sua arte que
quase não lhe sobrava tempo para mais nada, a não ser para participar em
tertúlias de amigos ou em reuniões a favor de causas humanitárias. O
subchefe entrou na esquadra com estes pensamentos na cabeça e quase
estremeceu com a notícia recebida à chegada. O guarda Raposo havia atendido
um telefonema há breves instantes, onde se dava conta de um acontecimento
dramático em casa dos gémeos Faria: um deles fora encontrado morto! O
Pinguinhas não perdeu tempo. Telefonou para a Judiciária e deslocou-se de
seguida até à casa dos gémeos. O irmão da vítima recebeu-o com semblante
pesado e algumas lágrimas: “Obrigado por ter vindo. Quando dei conta que o
meu irmão estava morto, não soube o que fazer e resolvi ligar para a
esquadra. Ainda me custa a crer no que aconteceu. Quando o deixei, ele estava
bem e felicíssimo com o seu novo amor”. O
morto estava recostado num sofá. No chão, caído a seus pés, um caderno
formato A3, alguns lápis de cera e correspondência diversa. Sobre uma
mesinha, permanecia um copo meio de água. Ao lado do cadáver estava poisada
uma missiva datada da véspera, onde se podia ler: “Pedro. Conforme combinado
por telefone, junto envio a carta que farás o favor de enviar daí para a
minha mulher porque só assim a conseguirei convencer de que estou em Lisboa.
O sobrescrito está selado e endereçado, mas vai aberto para que confirmes que
não estás a pactuar com nada de grave. Estou apenas a tentar salvar o meu
casamento. Obrigado. Nuno. PS – na próxima semana deixo o Algarve e volto
para Gaia; passa lá por casa”. A pedido do subchefe, o
gémeo contou tudo o que se tinha passado naquela manhã. “Acordei com os
guinchos da Lili Jardim, que estava na cama com o
meu irmão. Eram nove horas. Não aguentei o barulho e fui tomar o
pequeno-almoço ao Café do Chico. Quando regressei encontrei o carteiro, que
me passou a correspondência. Ao subir as escadas, cruzei-me com o corno do
vizinho da cave. No primeiro piso, vi ainda a gorda Gertrudes de pescoço
espetado a cuscar
o que se passava no andar de cima. E quando cheguei ao último lance das
escadas, vi a Lili que se preparava para sair.
Estive pouco tempo em casa. O meu irmão pediu-me que fosse meter uma carta no
correio. Fui até aos Restauradores e quando voltei encontrei-o morto”. Envenenado
– foi o veredicto da PJ. O relatório médico-legal concluíra que o gémeo
morrera com uma pequeníssima dose de arsénio. O copo de água presente no
local do crime não continha sinais do veneno. Em lado algum foram encontrados
vestígios de arsénio e o cadáver não fora mexido. O inspector
Gustavo, que dirigia as investigações, ouviu o irmão da vítima e chamou à sua
presença a Lili Jardim, o carteiro da zona e os
vizinhos dos gémeos. Antes, porém, ordenou ao seu ajudante Falcão que fizesse
uma diligência nas proximidades; fez dois telefonemas breves e… horas depois
deu o caso por resolvido, assegurando que não se estava apenas perante um
crime de homicídio, o que causou grande espanto e perplexidade em Pinguinhas. Exceptuando os telefonemas do
Gustavo e algumas conversas trocadas em surdina entre este e os seus homens,
o subchefe ouviu tudo o que se disse durante a investigação. Nos depoimentos,
Lili confirmou ter estado até de manhã com Pedro,
que vivia uma fase feliz, cruzando-se à saída com Paulo; o carteiro afirmou
ter entregado naquela manhã a correspondência ao “gémeo das t-shirts”; o homem que mora na cave e
a vizinha Gertrudes disseram ter visto o “gémeo bonzinho”, por volta das dez. Nada disto parecia contribuir para
o esclarecimento do caso, mas Pinguinhas tinha a sensação de que algo lhe
escapava, sobretudo quando olhava para os dois gémeos. Mas o que seria? E o
que terá acontecido de facto em casa dos irmãos Faria? |
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© DANIEL FALCÃO |
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