Autor Data 3 de Abril de 2011 Secção Policiário [1028] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2011 Prova nº 4 (Parte I) Publicação Público |
SMALUCO E O PERIGOSO BOMBISTA Inspector Boavida Natália
está de volta à prisão e Smaluco de regresso ao desconsolo de um quotidiano
triste, cinzento, amargo. Vai recomeçar o fadário de idas e vindas entre Lisboa
e Tires para um reencontro diário sem alento, sem chama. Os 15 dias de
licença precária de Natália souberam a pouco, mas foram mais saborosos do que
os muitos anos em que os dois andaram mutuamente perdidos. Agora, com as
grades do cárcere a separá-los, resta pouco mais do que recordar estes curtos
dias de liberdade e as loucas aventuras dos primeiros anos em que viveram a
paixão que os une desde que os seus olhares se cruzaram pela primeira vez,
nos idos de 1974, em pleno PREC. Os
tempos conturbados, mas gloriosos e eufóricos, que se seguiram à Revolução
dos Cravos foram os que deixaram mais marcas memoráveis nas vidas dos dois
amantes. A amargura, o desânimo e a apatia que se vivia em todo o país, fruto
de mais de quatro décadas desbaratadas pelo Estado Novo, haviam dado lugar ao
sonho de um futuro mais justo, mais solidário, mais humanista. Eles andavam
duplamente inebriados, pelo amor e pela revolução. Era raro o dia em que não
se juntavam ao povo para festejar nas ruas o fim da guerra ou para gritar em
defesa dos militares de Abril sempre que surgiam notícias de ameaças internas
ou externas à liberdade reconquistada. Em
Julho de 1974, poucos dias depois dos cravos inundarem de novo as ruas de
quase todo o país, em mais uma manifestação de apoio ao MFA, chegaram à
Judiciária notícias de que um perigoso bombista italiano perito em disfarces
e falsificações se preparava para perpetrar um atentado terrorista em Lisboa.
Segundo as autoridades responsáveis pelo controlo e segurança das nossas
fronteiras, haviam entrado em Portugal cinco dezenas de cidadãos
estrangeiros, que urgia colocar sob vigilância. Todos os agentes disponíveis
foram convocados para aquela missão. Até Smaluco, que normalmente se ocupava
apenas de pequenos delitos, foi chamado a intervir. Disfarçado
de turista brasileiro em lua-de-mel, Smaluco hospedou-se numa luxuosa unidade
hoteleira da capital onde haviam sido sinalizados três dos suspeitos: um
judeu, um francês e um espanhol. A gravidade do caso exigia celeridade,
descrição e perspicácia. Manhã cedo, já ele circulava pelos espaços comuns do
hotel, abraçado à sua jovem namorada Natália, que se dispôs a acompanhá-lo. O
judeu Aki Abdul madrugara. Acabara de tomar o pequeno-almoço e preparava-se
para colocar a leitura em dia. Sentou-se num confortável sofá, no lobby,
colocou um jornal sobre a mesinha de apoio, retirou do bolso do casaco os
óculos de lentes grossas e aros finos e ignorou Smaluco. De
pé, apoiado nas costas do sofá, Smaluco não desistiu da tentativa de
abordagem. O homem continuou a leitura. Natália, que se aproximara do sofá,
de frente para ele, deixou escapar um “Ah!” quando, ao seguir com o seu
olhar, da direita para a esquerda, o movimento rápido do dedo que acompanhava
as linhas do jornal, reparou na sujidade escondida por debaixo do verniz que
cobria as unhas do homem. Num gesto abrupto, Aki Abdul tirou os óculos, olhou
em frente e “rosnou” num inglês impecável: “Quer alguma coisa?” A resposta
surgiu-lhe nas costas, pela voz de Smaluco: “Desculpe, não queremos incomodar.”
“Mas já incomodaram!” – sentenciou o homem. A
situação foi desanuviada pelo ar quase angélico de Natália, que se apresentou
como actriz e manifestou interesse em recolher informações sobre os
principais acontecimentos culturais da terra de Aki, designadamente o que se
relaciona com as artes de palco: “Soubemos que é natural de Tel Aviv e, como
vamos para lá nos próximos dias, ousámos abordá-lo.” O judeu retorquiu:
“Lamento desiludi-la. A minha cidade possui um grande significado histórico e
religioso, mas é desprovida de interesses culturais relevantes.” E mergulhou
de novo na leitura dos caracteres hebraicos. “Oh, que pena!” – disse Natália,
afastando-se com uma gargalhada. O
francês Jean-Pierre parecia bem mais agradável. Jovem, atraente, vestido de
forma bastante informal, de jeans, sapatos desportivos e t-shirt azul com a
Torre de Piza no peito, estava encostado ao umbral de uma janela a admirar a
paisagem. Natália dirigiu-se-lhe com um “Ói! Tudo bem?”, num português
adocicado pelo sotaque e pela delicadeza colocada na voz. O francês não
resistiu. Num estranho linguajar, um misto de italiano e castelhano com
cambiantes de catalão, o rapaz replicou, sorrindo: “Tudo bem, sim. Estou aqui
olhando quem passa… Posso ajudar?” Smaluco interveio: “Pode sim. Vamos amanhã
para Paris. Pode dar-nos algumas sugestões de locais a visitar?” Provocante, Natália aproximou-se mais de
Jean-Pierre e sussurrou: “Sabemos onde nasceu. O pessoal da recepção é
linguarudo. Só temos três dias para visitar Paris. Ajude-nos.” Natália quase
se enroscou no pescoço do francês. Ele estava deslumbrado e, ao mesmo tempo,
perplexo com o atrevimento. Um nervosismo estranho tomou conta da sua voz,
mas lá foi dizendo: “Bom. Paris… tem… muitos encantos. A Torre Eiffel… o Arco
do Triunfo… o Museu do Louvre.” Natália estava cada vez mais perto do rapaz,
respirando quase junto ao seu pescoço. Antes que a situação tomasse
proporções incontroláveis, Smaluco puxou-a por um braço e arrastou-a até à
recepção. Na
cabine telefónica, o espanhol Pepe Diaz não parava de fazer chamadas. Umas em
francês, outras em alemão e outras ainda em inglês. Era óbvio que ele
esperava por alguém, porque durante os seus telefonemas, feitos sempre num
tom de voz elevado, ia olhando para a porta do hotel. De súbito, surgiu da rua
um homem, vestindo um casaco de meia estação de golas levantadas, que trazia
um grande embrulho. Pepe desligou a chamada, correu para ele e dirigiu-se-lhe
num italiano perfeito: “Dê cá isso. Amanhã quero uma explicação sobre este
atraso.” Smaluco estava impressionado com o talento do homem para línguas.
Ele era aquilo a que se pode chamar um poliglota! O
que Natália mais apreciava no espanhol era o tom da sua pele. Um bronzeado
invejável, que fazia sobressair o castanho claro dos seus grandes olhos. Um encanto
de homem! Segundo as informações recolhidas, ele era natural de Barcelona e,
tal como os outros suspeitos, deslocara-se pela primeira vez ao nosso país.
Natália, a um sinal de Smaluco, fingiu tropeçar e atirou-se literalmente para
cima do espanhol, fazendo com que ele deixasse cair o embrulho, que Smaluco
se apressou a apanhar do chão. Pelo tacto, dir-se-ia que continha algo
sólido, pesado, mas emborrachado. Irritado, o espanhol arrancou o embrulho da
mão de Smaluco e correu em direcção ao quarto. Natália
e Smaluco sorriram, abraçaram-se, trocaram um beijo terno e apaixonado e
foram também eles para aos seus aposentos, dando por concluída a sua missão
neste caso. Para eles, não havia sinais de que qualquer dos três suspeitos
pudesse ser o temível bombista procurado pela Judiciária. Mas estavam
enganados. Nessa tarde, o Comando Operacional do Continente (COPCON)
surpreendeu um dos três homens com uma quantidade apreciável de explosivos
junto ao Palácio de Belém. Durante o interrogatório confessou tudo. Era ele o
tal perigoso bombista! Mas qual? – perguntou Smaluco, que, passados tantos
anos, ainda hoje precisa que lhe avivem a memória. Ora, façam o favor… |
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© DANIEL FALCÃO |
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