Autor Data 2 de Abril de 2017 Secção Policiário [1339] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2017 Prova nº 3 (Parte I) Publicação Público |
SMALUCO E A MORTE DO CHEF JOCA GANITAS Inspector Boavida Um
dos casos conduzidos pelo detetive Smaluco mais comentados e discutidos nos
bastidores da Polícia Judiciária, onde prestou serviço após concurso público até
ser reformado compulsivamente, relaciona-se com a morte do Chef Joca Ganitas,
um homem envolvido na noite clandestina de jogos de fortuna e azar. O póquer
era a sua perdição, gastando à mesa de jogo praticamente tudo o que ganhava
na sua reconhecida atividade profissional, terminando quase sempre a noite
com quatro parceiros há muito identificados como perigosos predadores de
jogadores viciados. Todos eles tinham um gosto especial por vinho da casta
alvarinho, que iam bebericando durante o jogo, quase sempre acompanhado por
iguarias previamente preparadas pelo exímio cozinheiro. As
dívidas contraídas por Ganitas nas suas noites mais azaradas eram
invariavelmente saldadas a meio da tarde do dia seguinte em sua própria casa,
onde preparava antecipadamente um pitéu preferido do seu credor da noite
anterior. Alberto Lucas, um sujeito franzino, de pequena estatura, tinha um
gosto particular por caldeirada de chocos com batata-doce. Bernardo Lara, um
homenzarrão de muitos músculos e pouco cérebro, adorava migas à alentejana.
Carlos Luís, um tipo divertido e sempre de bom humor, era o intelectual do
grupo e tinha predileção por lombinhos de porco, gratinados. Daniel
Libertino, um simpático galã com ar de quem ainda vivia no início do século
XX, gostava fundamentalmente de estufado de novilho com ervilhas. A
determinada altura, os dias foram-se sucedendo sem que os petiscos a meio da
tarde em casa do solteirão Ganitas acontecessem e as dívidas foram-se
acumulando sem que as sessões noturnas de póquer parassem alguma vez de ter
lugar. A rotina de fim do dia mantinha-se inalterada e, noite após noite, mal
saía do restaurante onde prestava serviço, o cozinheiro rumava para a
habitual mesa de jogo, sempre na esperança de recuperar o imenso dinheiro
perdido para os seus quatro parceiros, que haviam já começado a exigir, todos
eles juntos e em separado, a liquidação das dívidas, sempre com ameaças mais
ou menos veladas de violência física, ao mesmo tempo que iam exercendo
pressão, através de ameaçadoras mensagens anónimas enviadas por correio. Certa
noite, Smaluco, que se encontrava de plantão na PJ, recebeu um telefonema da
PSP dando conta de uma ocorrência que requeria a intervenção urgente da uma
brigada da polícia criminal. O caso conta-se em breves palavras. Os colegas
do Chef Joca Ganitas, estranhando a sua ausência no posto de trabalho numa
noite de muito movimento, e após várias chamadas telefónicas infrutíferas
para sua casa, decidiram tomar a iniciativa de comunicar a situação à PSP,
que foi dar com ele, por volta das dez da noite, caído na cozinha, com a
cabeça dentro do forno, morto, de nariz enfiado num tabuleiro, com inúmeras
queimaduras no rosto que o deixaram quase irreconhecível. Junto do fogão
estavam quatro cartas de jogar: quatro ases… Um póquer de ases! Quando
chegou ao local da ocorrência, inchado pelas suas conhecidas soberba,
fanfarronice e vaidade, o detetive Smaluco, de gabardina beije vestida e de
cachimbo “à la Maigret” apagado no canto da boca, não teve quaisquer dúvidas
de que se tratou de um acidente. Para ele, o homem havia caído de cabeça no
forno quando o petisco que cozinhara já estava no ponto, ao tropeçar
inadvertidamente numa garrafa de vinho alvarinho que se encontrava tombada no
seu caminho, não muito longe de dois copos com resquícios daquele delicioso
néctar minhoto. E era isso mesmo que ele se preparava para colocar no seu
relatório da ocorrência, não fosse um dos jovens camaradas que o acompanhavam
o ter alertado de forma veemente para o grave erro que iria cometer. Levantou-se então uma
grande discussão, insistindo Smaluco que o seu raciocínio estava certo e
devidamente sustentado nos indícios encontrados, pelo que reportaria isso
mesmo no relatório, fazendo-se valer da sua posição de superior hierárquico
naquela circunstância, por ser o membro da brigada com maior antiguidade de
serviço. Conteve-se, porém, quando se lembrou subitamente que havia combinado
para o fim da noite um encontro com a sua então jovem namorada Natália, que
ficou de esperar por ele num bar do Bairro Alto muito na moda, logo que
terminasse o espetáculo em que participava. E como não a queria fazer
esperar, porque ela não tolerava atrasos e ele não suportava os efeitos do
seu mau humor, deixou ao cuidado do camarada a elaboração do relatório, que
os leitores farão o favor de tentar reproduzir. |
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© DANIEL FALCÃO |
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