Autor

Inspector C. M. Bond

 

Data

10 de Setembro de 2000

 

Secção

Policiário [478]

 

Competição

Torneio 2000

Prova nº 9

 

Publicação

Público

 

 

DOMINGO, DIA 13

Inspector C. M. Bond

 

Domingo, 13 de Fevereiro de um ano qualquer. Não interessa.

O inspector Sacarim está triste, preocupado, decepcionado, desiludido, enfim, era possível aqui ficar largas linhas a descrever por meio de sinónimos o estado de espírito de Sacarim: estava na merda.

Um indivíduo tem vinte anos de carreira, folha de serviços de uma alvura onde não foi preciso pôr lixívia, pensa que se conhece as pessoas, pensa que se conhece os amigos, pensa que se conhece os colegas, pensa que se conhece os subordinados… pensa que se conhece os colegas amigos que se escolheu para subordinados… e de repente… tretas. Era tudo treta. Era mau colega, mau subordinado… Será possível continuar a chamar-lhe amigo? Será possível continuar a chamar amigo a quem nos atraiçoa enquanto colega e subordinado? É esta dúvida que atormenta o espírito de Sacarim. Dúvida que quase o faz esquecer mais um êxito profissional. Afinal, o criminoso foi descoberto!!! Olha para os relatórios que os seus cinco subordinados colegas amigos lhe fizeram. Relê-os um a um… Talvez tivesse sonhado, talvez tudo não tivesse passado de uma ilusão. Talvez não tivesse morrido ninguém de nome Siorim.

 

O 1º… o de Pacionim – “A testemunha que me calhou interrogar é de nacionalidade tailandesa, domina mal o português, fazendo no entanto um uso bastante razoável do inglês. Todo o interrogatório decorreu em inglês. É provável que o senhor inspector o ache pouco pormenorizado, mas o limitado domínio de inglês por parte de ambos (o meu e o da criada) limitou-me um pouco.

– Quando chegou a Portugal?

– Há três meses.

– Que fazia nesta casa?

– Lavava, limpava, “you know”… (os atributos físicos da dita senhora fazem-me especular um pouco, mentalmente).

– Como veio cá parar?

– Um amigo é que tratou de tudo…

– Um amigo?

– (Corou um pouco) “You know”…

– Ok. Quem esteve nesta casa hoje?

– Três pessoas, três amigos que jogam poker com ele…

– Todos ao mesmo tempo?

– Sim, jogam os quatro ao mesmo tempo!

– Não! Estiveram cá os três ao mesmo tempo?

– Sim, os três ao mesmo tempo, por volta das 11 horas da manhã.

– Depois de eles chegarem, o que aconteceu? (Eu sabia que a morte havia sido comunicada às 12h para a polícia, chegando eu ao local cerca das 12h15, depois de ter deixado a reunião em que me encontrava desde as 10 horas, sr. inspector.)

– Foram todos para o escritório. E saíram um de cada vez, pois ouvi a porta da rua bater três vezes. O primeiro saiu às 11h15, o segundo às 11h20 e o último saiu às 11h50. Lembro-me porque estava a descascar batatas em frente a um relógio. Fui ao escritório perguntar se o patrão queria alguma coisa, e ele estava morto.

– Ok. Mais alguma coisa que achasse que eu devia saber?

– Bem, há um quarto…

– Um quarto amigo?

– Não, um quarto desocupado, onde eles jogavam poker. Não tenho a certeza, mas julgo que o último amigo a sair lá foi com o patrão, pareceu-me pelos passos.

– Ok, obrigado…

Dirigi-me ao dito quarto, depois de ela me ter garantido que este havia sido limpo por volta das 11h45, durante um intervalo do descasca batatas. Não encontrei lá nada digno de registo, excepção feita a um isqueiro de plástico, todo branco, que junto a este relatório. Segundo a empregada, o isqueiro não era do seu patrão, que nem sequer fumava. Estava em cima da mesa, pelo que dificilmente escaparia à empregada tailandesa.”

 

0 2º… o de Morgarim – “Este é o relatório do primeiro contacto com a governanta da casa da vítima. Trata-se de uma senhora com 53 anos, aparentando a idade que tem. Realizado pelas 12h20, depois de observar o local do crime, tendo chegado ao local pelas 12h15, na companhia de Pacionim.

A senhora disse-me que se ausentara de casa por volta das 10h30, voltando pelas 12 horas, quando encontrou a empregada tailandesa em pânico, que lhe disse, literalmente ‘patrão morto amigo poker’. Foi ela que telefonou para a polícia, afirmando não ter feito quaisquer perguntas à empregada. Perguntei-lhe a identidade dos amigos e que razões poderiam ter os ‘amigos’ para cometer o crime (Pacionim já me informara que a tailandesa não sabia ao certo quem fora), ao que me respondeu que um era o senhor Soribim, industrial do ramo alimentar, outro era Racionim, proprietário de uma padaria, e outro era Atariotrim, a quem uma herança fizera rico, e que não fazia nada no capítulo profissional. Quanto a motivos, afirmou-me que não conhecia a nenhum deles razões para cometer este homicídio.”

 

O 3º… o de Iocanim – “Dirigi-me à residência de Soribim por volta das 16 horas, abriu-me a porta um mordomo que prontamente me conduziu ao escritório do seu patrão. Esperei breves minutos, durante os quais pude verificar o seu fascínio pelo Egipto: nas paredes estavam pendurados papiros, nas estantes dezenas de livros e cassetes vídeo sobre o Egipto antigo e moderno, no chão estátuas dos antigos deuses egípcios, não faltando nem uma réplica de um sarcófago! Isto além de todos os objectos quotidianos com motivos do mesmo género: pisa-papéis, porta-canetas, cinzeiros, telefone (!), agendas, etc. Quando entrou cumprimentou-me cordialmente, perguntou-me ao que vinha e pareceu-me ficar genuinamente chocado com a morte do amigo. Para minha surpresa, negou-me ter estado na casa da vítima durante o dia. Afirmou-me que estivera durante toda a manhã a pôr o sono em dia. Perguntei-lhe se sabia de alguém com motivos para matar a vítima, ao que disse que não. Já informado do isqueiro esquecido, tirei casualmente um cigarro do maço que trazia do casaco, pedi-lhe autorização para fumar, e de seguida pedi-lhe lume, ao que me respondeu que não fumava, mas que pediria ao mordomo que me trouxesse algo com que acender o cigarro.

Disse-lhe que não merecia a pena De saída, perguntei-lhe, por mera curiosidade pessoal, se o sarcófago tinha alguma múmia dentro, ao que ele me respondeu, sorrindo, que não. Mal saí da residência telefonei a Pacionim, a informar da divergência entre o depoimento da empregada e de Soribim, e fui informado que, de forma casual, soubera que esta havia desaparecido durante a tarde, e disse-me que iria começar imediatamente os esforços para a sua localização.”

 

O 4º… o de Zariotrim – “Encontrei Racionim pelas 16 horas na sua padaria, de dimensão média, conduziu-me ao seu pequeno escritório, e foi lá que lhe fiz as seguintes perguntas:

– Que foi fazer hoje a casa do seu amigo Siorim?

– Ainda não fui hoje a casa desse meu amigo!

– Que fez esta manhã?

– Estive a observar um terreno que pretendo comprar. O que é que isso tem a ver com o Siorim? O que é que lhe aconteceu?

– O que o leva a pensar que lhe aconteceu alguma coisa?

– Nada… mas como falou nele…

– O seu amigo Siorim foi assassinado ao final da manhã de hoje. E a empregada diz que o senhor lá esteve, na companhia de dois outros amigos.

– Mas é falso, completamente falso… e o que dizem esses outros amigos sobre isso, quem são eles?

– Não sei o que dizem, pois devem estar agora a ser interrogados. O senhor fuma?

– Fumo.

– Pode-me mostrar o seu isqueiro?

– Como? Sim, claro… não, perdi-o ontem, e hoje tenho-me desenrascado com os isqueiros dos empregados… mas o que é que o isqueiro tem a ver com isto tudo?

– Como era o isqueiro?

– Branco, de plástico… mas porquê?

– Pode-me acompanhar até ao meu local de trabalho? Acho que o meu chefe vai gostar de falar consigo.

Acompanhou-me, dizendo que não tinha nada a temer, etc, etc…

Telefonei a Pacionim para lhe dizer que era capaz de ser bom ir buscar a tailandesa para a confrontar com Racionim, e este disse-me que ela estava desaparecida, estando a desenvolver esforços para encontrá-la”

 

5º… o de Taracim – “Toquei repetidas vezes à campainha, até que me veio abrir a porta uma rapariga ainda jovem, de cabelo azul não natural, de roupão e com um ar muito cansado. Perguntei pelo dono da casa, e ela conduziu-me por um corredor até ao quarto onde este estava dormindo. Aparentemente, haviam partilhado o quarto durante as últimas horas. Ela acordou-o, e ele, surpreendido, conduziu-me até ao seu gabinete, em trajes bastante… menores. Perguntei-lhe o que tinha ido fazer à casa do amigo, ao que ele me respondeu que não tinha lá estado durante as últimas 48 horas. Perguntei-lhe então o que fizera durante a manhã, ao que ele me respondeu que estivera a dormir, na companhia da rapariga de cabelo azul, rapariga que havia conhecido num bar durante a noite. Segundo o próprio, não havia bar ou discoteca no país que ele não conhecesse. Para ele a noite era tudo. Perguntei-lhe se sabia de alguém com motivos para matar a vítima, ao que me respondeu que não, especifiquei, falando dos outros dois amigos em particular, respondeu-me de novo que não. Para averiguar quanto ao isqueiro de que Pacionim havia falado, tirei um cigarro e pedi autorização para fumar, o que ele, educadamente, me negou, pois além de não fumar tinha um total pavor a fumo de tabaco, não suportando sequer que fumassem na sua companhia. Perguntei-lhe se alguém do grupo de poker fumava, respondeu que sim, que Racionim fumava, mas que se abstinha de fumar durante os jogos. Despedi-me. Telefonei a Pacionim acerca do não encaixe deste depoimento com o da empregada, ao que ele me respondeu que eu era o terceiro como mesmo problema, e que ele ainda não fora capaz de localizara dita senhora.”

 

E agora, quem é o “traidor”?

E também, quem é que ele protege?

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO