Autor Data 23 de Junho de 2002 Secção Policiário [571] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2001/2002 Prova nº 12 Publicação Público |
O INSP. FIDALGO E A MORTE DO CONDE Inspector Fidalgo Aquele Inverno decorria gélido.
Nevara intensamente nesse dia até cerca das 19 horas e, em redor da enorme
mansão do Conde, acumulava-se um imenso manto branco com mais de vinte
centímetros de altura. Eram 19h30 quando Alberto
chegou do gozo do seu dia de folga. Como sempre foi saudado logo no portão e
o seu carro seguido em alegre algazarra pelos dois enormes cães de raça
pastor alemão que circulavam livremente. E depois, a pé, até entrar pela
porta da cozinha. Aí, a cozinheira Amélia
ultimava o jantar que iria ser servido, como sempre, às 21 horas. – Boa noite, Melinha!,
saudou com carinho. – Boa noite, Alberto. Que
tal foi a folga? – Óptima,
como sempre… Mas tenho de ir mudar de roupa. – Vai lá mudar-te antes que
te constipes. E Alberto subiu ao último
piso, onde os criados tinham os quartos. Por volta das 20 horas,
Alberto regressou à cozinha, pondo uma panela de água a aquecer porque,
dizia, tinha os pés gelados e muito cansados. Mas logo saiu para o jardim
porque o filho do patrão, Nuno de seu nome, e dois amigos que ali estavam
instalados deviam estar a chegar e os cães não gostavam particularmente do
Jerónimo, um dos amigos. Para evitar dissabores, o Alberto recolhia os cães
quando as visitas chegavam e depois de estas estarem dentro da mansão, ia de
novo soltá-los. Não demorou muito a
ouvirem-se as vozes exaltadas e alegres, logo seguidas pela aparição de três
jovens que entraram pela porta da cozinha, como faziam quase sempre.
Praticamente só o Conde usava a porta principal. – Olá, Melinha!
A mãe manda um beijinho para ti! – Como está a sua mãezinha?
Está boa? – Está bem, está. Que bom
cheirinho, Melinha, o que vamos ter?, perguntou. – O que é que o Menino mais
gosta? – Uáu,
malta, vamos ter um assado! E todos rodearam a
cozinheira, dançando com ela, em alegre brincadeira, que só terminou quando
Alberto apareceu vindo do corredor… – Boas noites, meninos.
Vejo que se estão a divertir com a Amélia, mas recordo que o senhor Conde
pretende jantar sempre às 21 horas em ponto! – Que susto, Alberto, nem
te vi passar…, espantou-se Amélia. E o senhor Conde ainda não chegou… – Enganas-te. Quando desci à bocado, para ir prender os cães, o senhor Conde tinha
acabado de entrar e foi para o seu quarto. – Bem, vamos mudar de
roupa, que é o melhor, adiantou Nuno dirigindo-se aos dois amigos. Alberto pegou no alguidar
para onde vazara a água já bem quente e retirou-se sem mais palavras. Cerca de dez minutos
depois, ouviu-se um estrondo que ressoou por toda a mansão e fez abrir uma série
de portas por onde espreitaram e depois saíram para o corredor, o Nuno, o
Jerónimo e o Telmo, tentando saber o que se passou. Logo de seguida, vindo do
último piso, apareceu Alberto e, vinda de baixo, Amélia. – Que se passou?,
interrogou Nuno. Que barulho foi este? Ninguém respondeu. No chão
estavam espalhados os cacos de um jarrão oriental de grande valor, que o
Conde guardava ciosamente em cima de uma mesa rigorosamente centrada sobre
uma tapeçaria antiquíssima, porque alguém lhe dissera, algures pela China,
que aquele jarrão estava ligado a si próprio e que morreriam ao mesmo tempo… – Desgraça!, comentou
Alberto. Agora o senhor Conde vai ficar fulo com isto. Ainda bem que o senhor
parece não ter ouvido. Foi de certeza coisa da Adélia – uma empregada externa
que todos os dias ia fazer limpezas entre as oito horas da manhã e as seis da
tarde – e da sua mania de mexer onde não é chamada! Ninguém toque em nada. E calmamente, para não
danificar a tapeçaria com os sapatos ainda molhados, tirou-os, arregaçou as
calças também molhadas no fundo, por causa da altura da neve e, como se de um
bailado se tratasse, procedeu à apanha de todos os bocadinhos visíveis, mesmo
os mais minúsculos, perante o olhar quase hipnotizado dos presentes. Em cima da tal mesa, atrás
do sítio onde o jarrão estivera até ao momento fatal, um relógio exótico
continuava a sua marcha inexorável. Era um relógio em que um boneco
impecavelmente fardado de combatente chinês saía de uma espécie de guarida,
dava alguns passos em frente, durante precisamente 15 minutos, rodopiava
sobre si mesmo, avançava durante outros 15 minutos, para voltar a dar meia
volta e assim por diante. Numa hora, fazia quatro vezes o seu trajecto. Terminada a operação de
limpeza, Alberto foi, finalmente, vestir-se a preceito para o jantar. Às 21 horas em ponto, mesa
impecavelmente posta no salão ao lado da cozinha, cada um no seu posto
habitual, aguardava a chegada do Conde. Um, dois, três minutos de
atraso! Não podia ser. Nunca tal acontecera. Teria adormecido? Teria sido
vencido pelo cansaço de ter andado todo o dia fora? Alberto agitou-se. Alguma
coisa acontecera. Saiu do seu posto e
dirigiu-se às escadas, espreitando para cima. Nada. Decidiu ir bater à porta do
quarto, mas de dentro não houve resposta… – Senhor Conde?, gritou
enquanto batia com mais força. Meteu ombros à porta, com
quanta força tinha, sem sucesso. Tomou algum balanço e atirou com todo o peso
do seu corpo contra o obstáculo, que cedeu com grande estrondo, deixando no
ar um cheiro a madeira partida, misturado com o bafio de ambiente pouco
arejado. O Conde tinha medo das correntes de ar e calafetava tudo. Já Alberto estava debruçado
sobre o corpo do Conde quando o filho e visitas chegaram, seguidos algum
tempo depois pela atónita Amélia. Quando o Inspector Fidalgo chegou ao portão, ainda não eram 22
horas, logo os cães lhe fizeram sentir a presença. Alberto recolheu-os e
abriu o portão: – Senhor Inspector, boa noite. Peço-lhe desculpa por o incomodar a
esta hora e com este frio, mas como o senhor era amigo do senhor Conde… – Sim, sim, Alberto. Fez
bem… Ao entrar pelo portão, o Inspector Fidalgo viu, bem em frente, a porta principal
da mansão, mas virou à esquerda, rente ao muro, até às garagens, onde
estacionavam vários carros, que Alberto foi identificando como sendo o do
patrão, o do filho Nuno, o da visita Jerónimo e o seu próprio. Dali,
podiam-se ver inúmeras marcas na neve, com pegadas muito confusas, que iam
até à porta da cozinha – situada a meio da fachada lateral da mansão – e dela
vinham. Havia também umas pegadas muito nítidas, produzidas por uma só
pessoa, em direcção à porta principal. Ao lado da
garagem estavam os aposentos dos cães, agora encerrados para não complicarem
a acção do Inspector. Já dentro da mansão, as
marcas molhadas de pegadas continuavam no corredor, depois da entrada
principal, até à porta que dava acesso à cozinha, a partir da qual as marcas
eram tantas que não permitiam seguir o seu rasto. Já no primeiro andar, lá
estava a tapeçaria, ainda revelando as marcas da queda do jarrão. O Inspector Fidalgo concluiu que foi o soldado ao caminhar
em sentido oposto à guarida que acabou por empurrar o jarrão, atirando-o ao
chão. No quarto do Conde, tudo
era confusão, a começar na porta arrombada, com a fechadura e manípulo quase
arrancados da porta, a lingueta bem cá fora e a chave a curta distância. Um
pouco à frente, deitado de bruços, estava o cadáver do Conde, muito rígido. A
face direita estava encostada ao soalho e via-se sangue já coagulado em redor
de toda a cabeça. A ferida estava, como pouco depois de confirmou, um pouco
acima do ouvido direito, e tinha uma forma que parecia uma estrela. Ao verificar o corpo, o Inspector notou que havia umas manchas arroxeadas na zona
da barriga e do peito, que se repetiam nas coxas. Nos pés, os sapatos tinham
os atacadores desapertados e ainda estavam molhados. O direito não estava bem
calçado. No bordo inferior das
calças o Inspector viu algo parecido com um fio,
talvez um cabelo e lentamente, com mil cuidados, pegou num lenço de papel que
retirou do bolso e começou a tentar removê-lo, o que se tornou tarefa
difícil, exigindo diversas tentativas e raspagens, finalmente bem sucedidas.
Mais tarde o laboratório não teve dúvidas, era um cabelo de mulher e
pertencia à ex-mulher do Conde e mãe do Nuno, de quem estava divorciado há
alguns meses. A mão direita do Conde,
muito hirta, segurava uma pistola de calibre 7.65mm, com o dedo indicador,
húmido e enrugado, no gatilho. Foi o único dedo em que foi possível recolher
impressões digitais. Mais tarde, o laboratório
não teve dúvidas. Aquela arma tinha sido a que disparara o tiro fatal. E foi
a que matou a ex-mulher do Conde, a cerca de quarenta quilómetros dali, na
casa onde vivia depois do divórcio e cerca de quarto horas antes de o cadáver
do Conde ser descoberto. Ninguém ignorava, nem mesmo
o Inspector Fidalgo, que o Conde continuava a amar
loucamente a sua ex-mulher e que muitas vezes lhe pedira que regressasse, sem
qualquer êxito. Ao contrario de Nuno que nunca gostou especialmente da mãe e
que, ao que se diz, foi o principal responsável pelo afastamento de ambos. Agora acontecia isto! O Inspector
Fidalgo virou as costas à mansão, passou pelo canil e libertou os cães, que
correram e saltaram alegremente em seu redor. Cães destes deviam andar
livres, pensou, enquanto fechava o portão entre si e os cães e pedia ao
Agente Lumago para o levar. Havia um relatório para
fazer… |
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© DANIEL FALCÃO |
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