Autor

Inspector Fidalgo

 

Data

6 de Julho de 2008

 

Secção

Policiário [885]

 

Competição

Campeonato Nacional e Taça de Portugal – 2007/2008

Prova nº 8

 

Publicação

Público

 

 

O INSP. FIDALGO E A MORTE NA AJUDA

Inspector Fidalgo

 

Naquele dia de calor, de um mês de Junho particularmente quente, o Inspector Fidalgo foi chamado a uma vivenda modesta, na zona da Ajuda, em Lisboa, onde ocorrera uma morte violenta, ao que dizia o agente da polícia que tomou conta da ocorrência.

O que se deparou ao Inspector Fidalgo não era agradável. A casa era simples, térrea e com uma traça que indiciava ter-se tratado de construção para habitação social. Em redor, um pequeno jardim, mal arranjado, excepto nas traseiras, em que havia uma horta minimamente cuidada – onde se via, num extremo, um contador eléctrico, com a porta danificada, que alimentava o motor do furo da água –, que contornava toda a casa. Era ali que se encontrava um cão amarrado por uma forte corrente, ensanguentado na zona do pescoço, não sendo possível saber, naquele momento, se foi originado pela luta para o agarrar, se pela corrente a que se encontrava preso, se por outro motivo qualquer.

– Foi muito difícil prendê-lo, sr. inspector, muito mesmo…, referiu o guarda.

O muro exterior, bastante degradado, mostrava uma cancela que já vira melhores dias e a campainha, suspensa pelos próprios fios eléctricos, não funcionava, como o inspector testou. De resto, durante todo o dia não houve energia eléctrica, por causa de uma avaria qualquer numa central e só depois das 20 horas regressou.

Lá dentro, na cozinha pequena, o corpo da vítima estava estendido de bruços, ostentando um ferimento na zona da nuca, muito violento e profundo, certamente a causa da morte.

Em cima da bancada, de limpeza muito duvidosa, dentro de um prato raso, dois bifes temperados e prontos para cozinhar, com alho cortado em lâminas e sal grosso, com umas aparas de folha de louro. Mais adiante, algumas batatas no lava-louças, aguardando a preparação, certamente para cozer, já que uma panela com água estava colocada em cima de um dos bicos do fogão, esperando apenas que a chama fosse accionada.

Num dos cantos da cozinha, um tronco de madeira, de forma semelhante a um bastão, ostentava, num dos extremos, sangue e cabelos, certamente da vítima. Mais ou menos a meio, viam-se pequenas incisões e crateras, que o Inspector Fidalgo pensou serem marcas dos dentes do cão. Parecia ter sido a arma do crime, mas também podia ser, apenas, a causa do ferimento do cão.

Questionados os vizinhos, estes confirmaram que o velho vivia com um filho e não souberam apontar qualquer atrito que houvesse entre eles. Bem pelo contrário, parecia que o filho era trabalhador e delicado e que se davam muito bem, sendo frequente vê-los a brincarem com o cão, atirando-lhe um pau que ele ia buscar de imediato.

Uma vizinha apercebeu-se, durante a tarde, que o cão não esteve lá entre as 14 e as 16 horas, mais coisa, menos coisa, porque o filho o foi buscar e mais tarde devolvê-lo. Disse, também, que o velho não saiu de casa depois do filho sair de manhã, nem abriu a porta a um vizinho, chamado Januário, que lá foi bater e até escreveu um papel que meteu por baixo da porta.

Depois assistiu a toda a confusão, com a polícia a chegar. Tinha a certeza de que ninguém podia entrar ou sair daquela casa sem que ela notasse, porque do local onde estava tinha uma visão completa das portas e janelas.

– Não sei o que dizer… É muito triste tudo isto. O meu pai não fazia mal a uma mosca e não conheço ninguém que lhe quisesse mal. Hoje, o dia não correu nada bem. Logo de manhã, quando acordei, já não havia electricidade. Tomei um banho a correr porque o meu pai andava a regar a horta que tem nas traseiras e zanguei-me com ele porque nem tive já água para lavar os dentes! Depois, fui trabalhar, como sempre faço. Mais ou menos às 14 horas vim buscar o Rex, o meu cão, para ir ao veterinário. Estive lá com ele até por volta das 15h45 e assim que o veterinário acabou o tratamento do animal trouxe-o para casa. Entrei só por um instante para dizer ao meu pai que o Rex já ali estava e que ele devia ter cuidado com as brincadeiras com ele porque levou alguns pontos junto ao pescoço, no local em que lhe foi tirado um quisto bem grande. Quando me fui embora, ele ficou na cozinha a temperar uns bifes para o nosso jantar.

Mais ou menos às 16 horas já eu estava no emprego e estive lá até às 19h30. Fui beber uma cerveja com os meus amigos e mais ou menos às 20 horas já estava em casa. Estive alguns momentos com o Rex a verificar se estava tudo em ordem e depois entrei e dei com o meu pai assim. Telefonei logo para a polícia e esperei pelos agentes. Não mexi em nada e só lá fui fora para agarrar o Rex para os agentes poderem entrar.

Ah! É verdade. Quando cheguei há um bocado estava este bilhete debaixo da porta…

Mostrou ao Inspector Fidalgo uma folha de papel que dizia:

“Sr. Morais, estive cá hoje para lhe falar. Não posso continuar zangado consigo. Certamente que se falarmos tudo direitinho, vamos chegar à conclusão que tudo não passou de um mal-entendido e que podemos ser amigos como sempre fomos durante mais de 40 anos. Peço-lhe que me ligue logo que possa para acabarmos com esta zanga sem pés nem cabeça. Januário (telefone…)”.

Convocado o sr. Januário, este mostrou-se muito incomodado por ser a polícia a ir buscá-lo a casa e apresentou-se muito apreensivo…

– O sr. Morais apresentou queixa contra mim? Mas eu só vim para fazer as pazes com ele, nada mais. Só entrei porque a campainha não funciona e por isso bati à porta duas ou três vezes. Não me lembro a que horas foi… Como ele não abriu a porta, deixei um bilhete, mais nada. Eu não fiz mais nada, juro… A nossa zanga foi por causa do cão dele que passava a vida a fazer desacatos na minha horta, quando andava à solta. Agora isso já não acontece e o cão está sempre no jardim dele. Já não havia razão para mais zangas… Não achei estranho o cão não estar cá fora, porque às vezes ele punha-o dentro de casa, acho que por causa do calor, não sei…

Quando foi confrontado com a morte do Morais, pareceu ficar em estado de choque e não conseguiu dizer mais nada, apenas balbuciava “não fui eu, não fui eu!”.

A vizinha que tudo notava e via estava inconsolável. Então não era que tinha acontecido uma desgraça, ali mesmo, ao pé da sua janela, e não dera conta de nada? Como é que isso poderia ter acontecido?

Já à guisa de despedida, ainda acrescentou para o Inspector Fidalgo, em surdina:

– Sabe, era boa pessoa e o filho também, mas a vida não lhes foi fácil. Há uns anitos estiveram quase a perder a casa, mas lá conseguiram dar a volta. Sabe o que acho? Isto foi obra do diabo…

O Inspector Fidalgo não acredita nisso e os “detectives” certamente que também não.

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO