Autor

Inspetor Fidalgo

 

Data

6 de Agosto de 2020

 

Secção

Policiário [31]

 

Competição

Torneio Sábado Policiário 2020

Prova nº 7 – Parte I

 

Publicação

Sábado [849]

 

 

O INSPETOR FIDALGO E O CASO “MARIA”

Inspetor Fidalgo

 

Maria procurava a solução para um enigma que a atormentava. O mote fora dado pela queda que lhe aconteceu e a partir daí foi um corrupio de acontecimentos, cada um mais complicado que o anterior. 

Verdadeiramente já só lhe faltava que a acusassem da prática de terrorismo e, mesmo assim, parecia não estar essa hipótese afastada de todo.

O caso explica-se por si. Uma moça terá caído de forma bastante aparatosa na carruagem de um comboio, tendo batido com a cabeça e ficado amnésica. As pessoas que seguiam na composição, ao que contaram, correram para ela, mas só duas é que estavam despertas para contar o que se passou.

O Inspetor Fidalgo tomou nota do que viu e ouviu, mas sem o brilho nos olhos que era habitual quando fazia uma investigação.

Disse um dos observadores: “O comboio vinha calmamente, de sul para norte, juntinho ao rio. A linha é das mais bonitas de Portugal, é magnífica! Se nos chegarmos à janela, a dois passos de nós temos o precipício e lá no fundo o rio serpenteando. A moça estava sentada ali, mesmo junto à janela e olhava para o precipício. Tentei meter conversa com ela, mas deu-me com os pés. De repente levantou-se, foi até à frente da carruagem, belíssima, com a blusa branca e as calças muito justas, magnífica, fez uma espécie de dança, olhou fixamente para mim, deu dois passos em frente e disparou à queima-roupa sobre o desgraçado do tipo que estava ali sentado, junto à janela, precisamente no momento em que cruzámos com o comboio que seguia em sentido contrário. A bala estilhaçou completamente o vidro, que se espalhou pela carruagem e deve ter-se cravado na outra composição. A seguir, voltou para o seu lugar, tentou abrir a janela, mas desequilibrou-se no momento em que o comboio rodou à esquerda, rumo à ponte, bateu com a arma no vidro, que também se estilhaçou e espalhou completamente e depois voltou a oscilar quando a composição virou à direita, após a ponte, ao retomar a margem do rio. Só nessa altura ela conseguiu atirar a arma pela janela quebrada, mas acabou por cair com estrondo e ficou estendida, com a cara contra o chão. Fiquei completamente petrificado e não tive reação…”

Disse o outro: “Eu estava no lugar atrás da moça. Vi-a levantar-se e fiquei a apreciar aquelas curvas maravilhosas, de quem tem tudo no sítio devido. Ela foi até lá à frente, olhou para o fundo da ravina, para o rio, voltou-se, a dançar, deslocou-se um bocado para aquele lado e disparou um tiro no passageiro que lá estava sentado, penso que a dormir. Depois veio na minha direção, entrou no seu lugar, bateu na janela com a arma, o que fez com que milhares de pedaços de vidro se espalhassem e quando o comboio endireitou a sua marcha, depois da ponte, atirou a arma pela janela e caiu redonda. Fiquei um bocado à espera para ver se se levantava e depois fui ver, mas estava desmaiada. Alguém acionou o alarme e o comboio parou.”

Os outros dois passageiros dormiam e só foram acordados pelo barulho, atirando-se ao chão quando os outros dois lhes gritaram para o fazerem… Um deles, já idoso, quase ia tendo um ataque e não dizia coisa com coisa. O quarto não se lembrava bem do que se passou depois do sobressaltado acordar, não soube dizer se a moça estava em pé ou deitada, nada. Só se lembrava do que os outros dois lhe contaram, enquanto aguardavam pela polícia, e da imagem que lhe ficou de espreitar e ver os outros dois passageiros debruçados sobre a jovem a sacudir os estilhaços de vidro de cima dela. Mesmo naquele momento, ainda ficava em grande desconforto só por pensar o que teria levado uma moça tão querida a um ato daqueles.

A rapariga acabou por ser reanimada pelo revisor e pelos passageiros. Estava descalça e os sapatos alinhados debaixo do banco, não escaparam a alguns estilhaços de vidro. Ao levantá-la, descobriram por baixo um livro policial, O Crime do Expresso do Oriente, aberto na página 121. Não foram encontrados documentos, bagagens, carteira, nada que fosse dela.

Um enigma a que o Inspetor Fidalgo deu um nome: MARIA!

No fim de tudo, a investigação deu resultados curiosos.

Apareceram uns tipos da secreta e levaram a vítima, um espião perigoso, que devia transportar com ele uns tantos segredos de Estado – falava-se dos planos de localização do futuro aeroporto de Lisboa! –, mas que não foram encontrados em lado nenhum.

A arma foi recolhida logo após a ponte, no sítio aproximado onde os dois passageiros disseram, e foi a responsável pela morte. Só tinha impressões digitais da moça e na coronha alguns cabelos e células que se verificaram ser dela, também.

O comboio que seguia em sentido contrário foi atingido pelo projétil, mas não causou grandes estragos.

A vítima desapareceu. Perdeu o nome – que nunca se veio a saber, de resto! –, diluiu-se algures nas brumas do esquecimento.

Os dois estremunhados passageiros que acordaram à má fila são agora guias turísticos, percorrem as linhas do Expresso do Ocidente a contar as suas aventuras e o crime que quase presenciaram.

Os dois passageiros que viram tudo parece que descobriram a vocação e são agora agentes secretos, tão secretos, que não se conseguiu saber os seus nomes. Deixaram de andar de comboio e percorrem as estradas de Portugal atrás de espiões que andam à cata dos planos do Poceirão.

A moça, já quase recuperada, continua no entanto de médico em médico, de relatório em relatório, sem recuperar a memória dessas horas fatídicas e não sabe nome, morada ou número do contribuinte, se é terrorista, vingadora ou outra coisa qualquer. A amolgadela no cocuruto degenerou para um galo de grandes proporções, que entretanto foi emagrecendo. Em todos os documentos da investigação, lá está: MARIA!

O Ministério Público parece não ter grandes dúvidas e aguarda os centésimos relatórios médicos para saber o que deve fazer.

Finalmente, o Inspetor Fidalgo acabou mais um caso, mas ficou sem saber quem era a moça!

– Fidalgo, já não és o que eras! – pensava enquanto ia, cansado, a caminho de Marinhais, de regresso ao lar…

© DANIEL FALCÃO