Autor Data 15 de Outubro de 2020 Secção Policiário [41] Competição Torneio Sábado Policiário 2020 Prova nº 8 – Parte I Publicação Sábado [859] |
Solução de: O INSPETOR FIDALGO E A MORTE NA VIVENDA MODESTA Inspetor Fidalgo A
vizinha esteve em permanente plantão e tomou nota de todos os movimentos em
redor. Por isso, não lhe poderia escapar qualquer aproximação de um estranho,
nomeadamente no período em que o cão não esteve por lá, ou seja, entre as 14
e as 16 horas, mais coisa, menos coisa, intervalo em que ela mesma assinala
que o filho da vítima lá foi buscar e levar o cão. Viu,
inclusivamente, o Januário bater à porta e não obter resposta, deixando uma
nota por baixo da porta. Não
havendo qualquer indício de coligação entre a vizinha, o Januário ou o filho
da vítima, o depoimento dela iliba completamente o visitante, apesar de ele
apresentar algumas lacunas no seu depoimento, nomeadamente ao afirmar não
estranhar o cão não estar lá fora, no quintal, porque às vezes o metiam lá
dentro; mas também não estranhar que ele não lhe ladrasse lá de dentro (se lá
estivesse) quando bateu à porta; ou afirmar que a campainha não tocava, sem
explicitar o porquê: –
Por não haver corrente elétrica? –
Por a campainha estar pendente, presa por fios e presumir que não funcionava? –
Por ter conhecimento de que ela nunca tocava? Apesar
dessas falhas, fosse ele mentiroso ou apenas distraído, isso não faz dele
criminoso e, neste caso, sem qualquer oportunidade para cometer o crime,
debaixo da vigilância cerrada da vizinha atenta. O
Januário está, pois, fora da lista dos suspeitos. A
vizinha curiosa é a suspeita seguinte. Teve
oportunidade e tempo bastante para cometer o crime. Assistiu
à partida do cão e logo aí teve a sua oportunidade. Poderia descer, bater à
porta, esperar que o idoso lhe franqueasse o acesso e consumar o homicídio.
Como não temos descrição da sua compleição física temos de aceitar essa probabilidade. Só
que o filho da vítima afirma que foi devolver o cão depois das 15h45 e entrou
para avisar o pai que não devia brincar com ele. Portanto, pela afirmação do
filho, o pai estava vivo àquela hora. Para
ela poder cometer o crime após essa hora, outros obstáculos havia: –
O cão já lá estava, o que, não sendo um impedimento absoluto (não sabemos que
relação tem essa vizinha com ele, até podia ser pacífica), certamente ele
reagiria quando fosse para sair, porque qualquer cão reage a agressão ao
dono. –
O filho da vítima afirma que deixou o pai a temperar uns bifes para o jantar,
antes das 16 horas (hora a que refere já estar no emprego, certamente
confirmado). Mas a descrição feita pelo Inspetor Fidalgo depois das 20 horas
indica que há dois bifes prontos para cozinhar, com lâminas de alho, sal
grosso e aparas de folha de louro, o que é incompatível com tantas horas de
exposição, sobretudo no que se refere ao sal grosso, que, em contacto com a
carne, já não deveria ser visível. Mesmo que a vizinha cometesse o crime
minutos antes da chegada do filho da vítima e fosse ela a reforçar o sal nos
bifes (embora esse ato não fizesse nenhum sentido), o tempo decorrido até à
chegada do Inspetor (o filho chega, vê o que se passa, chama a polícia,
espera por ela, vai ajudar a agarrar o cão, espera pelo Inspetor…) era mais
que suficiente para que o sal desaparecesse de cima dos bifes. Portanto,
a hipótese da vizinha ser a responsável pelo crime cai por terra, também por
não ser imaginável que um filho, ao ver o pai morto inesperadamente e de
forma violenta fosse, ele mesmo, preocupar-se com o tempero de uns bifes,
minutos antes da chegada do Inspetor. A
vizinha é, assim, completamente ilibada. Afastada
a hipótese de alguém exterior ter ido cometer o crime, pela vigilância da
vizinha e de esta o cometer, restam-nos as hipóteses de suicídio, acidente ou
homicídio cometido pelo filho. Relativamente
ao suicídio e ao acidente, a natureza e a localização do ferimento, bem como
o instrumento agressor não são compatíveis. O
bastão tinha sangue e cabelos numa ponta, algumas crateras a meio, parecendo
marcas dos dentes de cão. Aventou-se a hipótese de o sangue e os cabelos
poderem ser do ferimento do cão, mas nem ele entrou em casa nem o velho veio
à rua depois do filho sair de manhã, como confirmam as várias fontes e, por
isso, em momento algum o bastão e o cão se cruzaram naquele dia. O próprio
filho refere que entrou em casa apenas para dizer ao pai que o cão já lá
estava e recomendar que não brincasse com ele, e mais tarde diz que, ao
chegar do trabalho, ficou alguns instantes com o Rex a ver se estava tudo bem
e depois entrou… As marcas certamente eram dos dentes do cão, mas feitas
anteriormente nas brincadeiras que os vizinhos descrevem. O sangue e os
cabelos foram provocados pelo ataque à vítima. Para
além de não existirem quaisquer indicadores de suicídio, a localização do
ferimento, na zona da nuca, inviabiliza essa hipótese, tanto mais que o
bastão aparece num canto da cozinha e não junto da mão da vítima. A hipótese de
acidente padece dos mesmos constrangimentos. Não é crível que alguém bata
acidentalmente contra um bastão num extremo de uma cozinha e vá cair de
bruços a alguma distância. Poderia, isso sim, ter escorregado e caído com
violência com a nuca sobre o bastão, mas nunca o corpo ficaria de bruços e
muito menos o bastão a tal distância. Resta-nos
o homicídio, praticado pelo filho. Ele
é o único que tem a oportunidade e comete alguns deslizes comprometedores. A
casa tem abastecimento de água de um furo acionado eletricamente. Se a
corrente esteve interrompida, o motor não pôde funcionar. No caso, haveria um
depósito com alguma capacidade porque o filho afirma que se zangou com o pai
por este estar a regar o jardim (por isso esgotar a água do reservatório), ao
ponto de ele só poder tomar um duche e nem para lavar os dentes sobrar! A
conclusão é que não tinham ligação à rede pública (terão passado por muitas
dificuldades há uns anos, como refere a vizinha), pois, nesse caso, não
havendo água do furo, haveria da rede. Com
a água completamente esgotada (nem um simples copo para lavar os dentes), a
pergunta a fazer é qual a origem da que se encontra dentro da panela que
aguarda as batatas. O velho não veio mais à rua, o filho não levou nenhuma
vasilha quando lá foi e a luz elétrica só regressou após as 20 horas, ou
seja, mais ou menos pela altura em que o filho diz ter encontrado o pai
morto. Portanto, apenas ele poderia ter enchido a panela, depois do regresso
da luz. A
mesma situação com o tempero dos bifes, que apenas foi feito naquele momento
e já como encenação do que ia ser exibido à polícia. Depois,
apenas ao seu dono principal, digamos assim, o cão perdoaria ter feito mal ao
seu outro dono, apesar de estar muito excitado – ao ponto de ter sido difícil
prendê-lo para permitir a entrada da polícia. A
conclusão é, pois, óbvia: o filho eliminou o próprio pai. |
© DANIEL FALCÃO |
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