Autor Data 30 de Outubro de 1994 Secção Policiário [174] Competição Prova nº 9 Publicação Público |
UMA HISTÓRIA ULTRA-ROMÂNTICA… Insp. Moka – O que o Morgado de
Freixedo conta pode ter o seu quê de verdade, mas também não é tudo para
acreditar! – repetia-me o meu pai, sabendo bem donde eu vinha naquelas tardes
de sábado. E eu, no entanto, quando passava pela “venda” naquele primeiro dia
livre do fim-de-semana, onde precisamente o Morgado, no seu vetusto “Adler”
que teimava ainda em andar, ia esperar o “Expresso”, deixava-me ficar por ali
esquecido encantado com as muitas histórias que ele ia debitando para quem o
queria ouvir, o copo de moscatel na mão papuda, grande e loiro, parecido em
mais velho com o D. Carlos de fotografia desbotada que, a cavalo, de chapéu à
Mazantini, tinha sempre flores em frente à moldura, na cómoda da Tia
Conceição. Não havia muito que fazer,
para um rapaz de 14 anos, naquela terra a mais de meio dia de viagem de uma
Lisboa sonhada ou de um Porto sisudo, no ano da graça de 1972. E um dia houve que recordo
como especial entre todos os outros e que foi quando o Morgado, moscatel a
mais ou reserva a menos, nos tentou contar, a mim – a quem ele insistia,
sabe-se lá porquê de tratar por “Domingos” – e ao Ti Zé da Venda, o que chamava
de “a história da sua vida…”. Tão viva me ficou de memória que posso
transcrevê-la rigorosamente aqui e hoje, como se a tivesse então “gravado” “– Conheceram-se no Norte
da Itália. Meu avô, o coração ainda dilacerado pelos dois dramas que a tão
curto intervalo o tinham atingido, tinha conseguido que minha mãe quebrasse a
clausura a que se tinha remetido e viesse ter com ele a uma cidade costeira.
E foi assim, sob a bandeira tricolor da então jovem nação que celebra a sua
reunificação a 25 de Abril, que os dois se encontraram em Trieste, no calor
de Agosto de 1899, crescia já o ar da mudança de século que ocorreria quatro
meses depois, vivia-se o entusiasmo permanente de uma ‘Belle Époque’ ainda
triunfante. “Apesar da diferença de
idades, eram ainda jovens. Nele, via minha mãe renascer com vida o mesmo
sorriso triste que a tísica fechara para sempre nas alturas suíças, sem poder
cumprir a promessa de a levar a esse país com nome estranhamente masculino
que tanto desejava conhecer. Nela, e no segredo que trazia consigo e que
timidamente lhe referiu, encontrava ele todo o vigor de uma juventude a que
apaixonadamente se entregara, sem lei e sem bênção, e que agora, consumida
pela dor, era e tinha em si o que lhe restava de família. “Decidiram viajar juntos, à
espera que eu me anunciasse. Correram o resto da Itália, a Grécia, grande
parte da Turquia. Aprenderam a compartilhar contemplações, aventuras e
silêncios. A iminência da minha chegada assustou-os, já na capital turca. Mandaram,
muito à pressa, vir papéis da Suíça e de Portugal, mas eu surpreendi-os nos preparativos.
Fui registado na embaixada de Itália no mesmo dia 29 de Fevereiro de 1900 em
que, pela manhã, respirei o ar fresco do Inverno da Anatólia, o primeiro ar
da minha vida terrena. Chamaram-me Deniz por ser esse, naquelas terras, o nome
do mar. Como ficou tudo certificado nesta velha certidão italiana datada de
Ancara e que, desde aí, me tem acompanhado sempre. Resta-me agora viver até
ao ano 2000, oh Domingos, para festejar os 100 anos nesse dia singular! “Três meses depois, meus
pais casavam na capela da mesma embaixada. Seis meses depois, entrávamos na
barra do Tejo, e viemos todos para Freixedo, onde fomos felizes muitos anos.” – Mais uma “morgadice”,
resmungou o meu pai, quando lhe contei a conversa da tarde. Verás que aí
haverá alguma verdade, mas há certamente muita patranha. Pergunto-me, desde então,
sobre o quanto de verdade haveria na história do Morgado, que não chegou aos
29 de Fevereiro do ano 2000. Onde estará a verdade e a mentira, “oh Domingos?”.
Quem me ajuda a separar… se é que separar é ainda possível, ou Pirandelo
tinha mesmo razão? |
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© DANIEL FALCÃO |
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