Autor

J. C. Al

 

Data

16 de Outubro de 1994

 

Secção

Policiário [172]

 

Competição

Supertorneio Policiário 1994

Prova nº 8

 

Publicação

Público

 

 

BATER CERTO

J. C. Al

 

Fui chamado ao complexo de escritórios, bloco C2, para descobrir a causa do desaparecimento de um projecto. No “atelier”, trabalhavam, além do arquitecto Leonel, três colaboradores – o António, o Abílio e o Carlos. Todos tinham um percurso nesse dia que os ilibava de qualquer suspeita. O sistema de alarme funcionava na perfeição. Os depoimentos coincidiam com o relatório da portaria dessa noite.

O desaparecimento deu-se no bloco C, piso 2. O “atelier” é do tipo “open-space”, com uns 120 m2 e duas salas – uma do arquitecto e outra fechada, de onde saía um cheiro irritante a amoníaco.

O roubo terá sido efectuado por alguém de dentro, segundo o arquitecto:

– Só têm acesso, além de mim, mais três colaboradores. O senhor sabe, estamos integrados num grande grupo empresarial e isto funciona como um centro de estudos avançados…

Fui falar com os colaboradores, que, a meu pedido, não foram informados do desaparecimento. O arquitecto disse-me ter deixado o “atelier” pelas 18h. Como era época de Natal, fora às compras.

Depois de me ter identificado como inspector da empresa de segurança do complexo, interroguei o António, que ficou um pouco irritado, quando lhe perguntei quando saíra.

– Eram umas 20h30, até fui o primeiro. Mas porquê?! Há algum problema?! Até parece que roubaram alguma coisa!

– Não. E só rotina Diga-me, como saiu?

– É boa! Como de costume: saí pela porta de incêndio, desci as escadas de serviço até ao piso 0, saí para o parque de estacionamento, meti a chave no carro…

– Pronto… pronto. Já percebi!

O homem estava a gozar-me, até soprou um bafo de fumo, enquanto me fazia a descrição. Noutras circunstâncias, estava era a “comer” um “pão”. Entretanto, havia chegado o Carlos, a quem perguntei exactamente o mesmo.

– Saí eram umas 22h30. Mas tive de voltar atrás. Esqueci-me das chaves de casa no “atelier” e vim buscá-las. Quando cheguei, já cá não estava ninguém. Até perguntei, mas ninguém respondeu. Assim, peguei nelas e pirei-me.

– Calculo que tenha saído e entrado pela porta de incêndio?

– Quando saí, utilizei a porta de incêndio, mas a entrada foi pela portaria. É que a porta de incêndio não abre por fora. É uma maneira de controlar as entradas.

– E entre a saída e a nova chegada, quanto tempo demorou?

– Uns 20 minutos, mais coisa menos coisa.

Enquanto esperava pelo terceiro colaborador, fui dar uma volta. Dirigi-me à porta de incêndio e empurrei a barra central. Enquanto estava no patamar e procurava um fósforo para acender um cigarro, ouvi um som forte. Afinal era a porta que se fechara. E eu não tinha um fósforo para o cigarro. Era menos um “prego para o caixão”.

Desci as escadas. Estava uma carteira de fósforos no chão, que apanhei para acender o meu cigarro. Estava completa, mas dobrada a meio, quase partida. Enquanto me dirigia para a portaria para falar com o segurança da noite, que me esperava com o relatório, fui interpelado por um indivíduo que se identificou como sendo o Abílio. Era o terceiro homem.

– Não. Ontem quando saí não vi nada de anormal e deviam ser umas 23h40. Como fui o último, liguei para a portaria, para o segurança ligar o alarme, e desci com ele.

O segurança confirmou que subiu para ligar o alarme. Eram 23h38. Naquela noite não chegara nenhuma encomenda. O piso 1 está desocupado; no 3, saem às 18h; e no 4, o último saiu às 22h10.

– É certinho, senhor inspector, comigo não falha nada. Está tudo aqui na folha, entradas, saídas, encomendas, alarmes ligados, rondas, etc.

Voltei atrás. Subi ao piso 2. Abri a porta de incêndio, subi até ao quarto e forcei as portas. Não cedem. Desci ao parque de estacionamento. Risquei um fósforo já partido para mais um cigarro.

Fui falar com o arquitecto.

– Não, o projecto não está no seguro. Só as instalações. Ainda por cima era para a fase final de um grande concurso internacional de ideias. Não é natural roubar projectos assim e não ia fazer um seguro de uma ideia para um concurso, dando a conhecer o projecto sabe-se lá a quem.

– E não desconfia de ninguém? Ou de algum colaborador?

– Nem pensar. Já trabalham comigo há alguns anitos.

Na sala fiz mais umas perguntas ao pessoal.

– O senhor inspector procura o quê?

– Neste momento, procuro lume. Estes fósforos que tenho são curtos e já me queimei.

– Peça ao António, ele é o único que fuma. Se já não lhe serve, dê-me a carteira. É que faço colecção.

Fui falar com o segurança. Expliquei-lhe o que se passava, para ele se lembrar nem que fosse do mais pequeno pormenor.

– É estranho. Aqui no complexo há coisas mais interessantes para roubar. Ali em baixo, no D, até há um escritório de lapidação de diamantes. Quando os colegas da Central cá vêm já se sabe que é para trazer ou levar as pedras. Agora aqui?! Deve ser para despistar!

– E não há nada em que me possa ajudar?

– Bem… sabe. Aquele sujeito mais brutinho, o Tó, anda estranho. Sobe com rolos, desce com rolos. Uma vez perguntei-lhe a brincar se eram rolos da massa e ele mandou-me logo…

Apareceu o Carlos. Ia para o parque de estacionamento. Fomos juntos.

– Bem sei que não me vai dizer nada, mas deve ser relacionado connosco.

– Então porque diz isso?

– O arquitecto esta manhã só diz que estamos feitos. Logo agora!!... sei lá? Tome lá a sua carteira – é que isto devia ter fita-cola agarrada e o boneco desapareceu. Não vale para a colecção.

– Está bem. Mas, diga-me, o que acha que se passa?

– Não sei. Isto está mau. Parece que querem desmembrar o “atelier”, só devem estar à espera da oportunidade. Mas hoje parece um funeral Deve ter havido ameaças ou qualquer coisa. O Abílio está sempre bem disposto, diz que tem para onde ir, o Tó só ameaça que se o puserem na rua faz e acontece, como é costume…

– Já me tinha apercebido!

– Eu estou mais ou menos. É que faço umas horas noutro “atelier” e se este falhar agarro-me ao outro.

Ele partiu. Olhei para o bloco. Eram todos iguais, umas janelas para dar luz às escadas de serviço e uma porta de acesso ao parque de estacionamento. O arquitecto apareceu. Ia à administração explicar o que se passava. Abriu o carro e sentou-se, e eu apoiei o braço na porta.

– Vamos lá ver o que vai acontecer quando lhes disser o que se está a passar. Pode ser que como é Natal eles fiquem mais calmos.

Bateu a porta com força e quase me ia prendendo os dedos. Depois, arrancou com brusquidão, levantando as folhas que estavam sobre o asfalto. Fui andando. Isto estava a complicar-se. Os salpicos de uma chuva miudinha acordaram-me.

Voltei à tarde ao complexo de escritórios, onde fui recebido pelo arquitecto.

– Dão-me dois dias para descobrir o que se passou. Depois fecham isto. Era do que estavam à espera para fechar. O grupo tem tido uns problemas e feito uns despedimentos e assim são mais quatro que deixam de receber.

– Senhor arquitecto, eu vou consigo demonstrar o que se passou.

Dei mais uma passa no cigarro. Pensei numa frase para acabar. Era o fim e eu sabia-o.

– Por mim, não fecham e até podem deixar de pagar a mais um. Não se preocupe que está tudo a bater certo.

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO