Autor Data 10 de Outubro de 1993 Secção Policiário [119] Competição Prova nº 7 Publicação Público |
O CASO DO EMPRESÁRIO ASSASSINADO J. Nunes – Já não suporto mais este
caso. Os meus superiores pressionam-me. A opinião pública pressiona-me. Se
pelo menos houvesse pistas. – Desabafava, visivelmente abatido, Carlos. Carlos é inspector da polícia há seis anos e é o tio de Heitor,
meu colega de curso. Neste momento refugiara-se em casa da irmã, talvez para
escapar à terrível pressão a que o têm submetido. – Conta-nos lá o que te
aflige, homem. Talvez te possamos ajudar. – Disse Heitor, aparentando, a quem
não o conhecesse, um certo ar de indiferença. Em boa verdade, ele estava mortinho
por conhecer todos os detalhes. – Já ouviste falar na morte
de um tal Eduardo Costa, grande empresário? Foi há cerca de nove dias. – Começou
Carlos. – Confesso que o nome não
me é estranho. – Respondeu o sobrinho. – Bom, o tipo foi
encontrado morto no escritório da sua casa. Um tiro na testa. A arma do crime
nunca foi encontrada. Ao lado, na sala de jantar, um monte de cacos de vidro espalhados
pelo chão de parqué indicavam o que outrora fora uma janela. Virei aquele escritório
do avesso à procura de qualquer indício que revelasse o autor do crime, mas
tudo quanto encontrei foi um ridículo pedaço de esponja e um fragmento de
cortiça. Este é o caso mais indecifrável que me surgiu neste ano. – Quem poderia ter interesse
na morte dele? – Perguntou Heitor. – Quase toda a gente na
vila. Ele era um dos principais empregadores da região, pagava mal e
porcamente, se me permites, e ultimamente três das quatro empresas dele
tinham os salários em atraso. Isto apesar de se fazer passear nos mais
recentes e luxuosos automóveis. Até o próprio mordomo não recebe há dois
meses! – Exclamou. – E o pessoal da casa? Com
certeza que ele tinha empregados. – Perguntei eu. – Tem dois empregados. O
mordomo, sr. Alberto, solteiro, detentor de uma
simpatia extraordinária, e é tão antigo como a casa. Tem 74 anos e trabalha
lá desde os 12. Está com a família desde que se lembra. Na verdade vive lá,
tal qual os seus pais no tempo em que era paquete do pai do actual (ex-)patrão. A sra. Rosa é a
cozinheira. Aprendeu a cozinhar num restaurante e andou de emprego em emprego
até ter sido contratada pelo falecido há cerca de 11 anos. Trabalha lá desde
então. Nunca sentiu vontade de se ir embora pois é muito bem paga. “O patrão
adorava os meus cozinhados. E os doces então…”,
disse-me ela, não sem orgulho. Disse-me ainda que a única coisa de que não
gostava era da maneira como o patrão tratava o pobre do Alberto. “Ele é uma jóia de criatura, nunca percebi porque o tratava tão mal”,
afirmou. – Constou-me que ele era
casado. E a mulher dele?... – Questionou Heitor,
sendo de imediato interrompido. – Aí pia mais fino. A jovem
Clara, senhora de uma beleza irreal, de 35 anos, embora não lhe desse mais
que 24, 25, é apontada por todos com quem falei como sendo de uma doçura e
ternura que provavelmente só a beleza lhe faz jus. Trabalha no laboratório
químico de uma empresa produtora de vinhos. Estava multo abalada pela morte
do marido. Creio na sua inocência, bem como na dos seus empregados… todos
eles têm um álibi, que curiosamente é o mesmo. – Como assim? – Indagou o
meu colega. – Todas as noites, por
volta das 22 horas, após ter terminado o seu serviço, Alberto leva uma
chávena de chá ao patrão, que fica a trabalhar até tarde no escritório e não
gosta de ser incomodado. Pouco depois, vai até à biblioteca, que fica ao lado
do escritório, e ali espera a cozinheira a fim de uma partida de cartas,
dominó, ou o que calhar. Os dois entretêm-se até mais ou menos à meia-noite.
Nesse fatídico dia, estavam os dois a jogar às cartas quando, mais ou menos
às 22h30, a sra. Clara entrou na biblioteca, para
dar algumas ordens quanto aos afazeres matinais, o que, segundo os empregados,
era frequente. Porém, pouco depois de ela ter entrado, cinco minutos segundo
o sr. Alberto, cerca de dez de acordo com a cozinheira,
ouviu-se um estrondo, como que um tiro. A parede que separa a biblioteca do
escritório é de madeira, pelo que facilmente se ouve o que lá se passa. Como
ninguém respondeu aos gritos de apelo, entraram escritório adentro, forçando
a velha porta de comunicação entre estas duas divisões, há muito não usada.
Depararam então com o corpo imóvel do sr. Eduardo.
A sra. Rosa ia desmaiando e o mordomo conduziu-a à
cozinha para tomar algo. A sra. Clara acompanhou
ambos até à cozinha. Aí chegados, a sra. Clara
achou por bem telefonar à polícia, após o que deixou aquela divisão e
dirigiu-se ao seu quarto no segundo andar, para esse efeito. – E porque não telefonou
logo do escritório? Não imagino um escritório sem telefone? – Interrompeu
Heitor. – Efectivamente
tem telefone. Mas a sra. Clara preferiu telefonar
do quarto, para não ter que fazê-lo ao pé do marido… morto. Até que não era
muito conveniente, já que podia, inadvertidamente, alterar as provas. E
pronto, chamaram-me e foi o começo da minha maior dor de cabeça. Este caso
está tão nebuloso para mim quanto o tempo que temos tido desde há duas
semanas. A propósito, choveu um bocado por volta das 21 horas desse dia. – E o médico legista, que
disse? – Interroguei. – Infelizmente o médico só
pôde aparecer muito mais tarde. Disse, porém, que a morte do empresário teria
ocorrido algures entre as 22 e as 23 horas. – Mais nada? Mesmo que seja
absurdo? – Inquiriu Heitor. – Nada. Nem absurdo, nem
nada. Nem havia pegadas no exterior… somente uma pequena cavidade no chão do
pátio, para aí a uns seis metros da parede, mesmo ao lado duma pedra com
aproximadamente as mesmas dimensões. Espera… ao falar com a cozinheira mais
tarde, ela referiu-me que quando entrou no escritório sentiu um cheiro azedo,
logo antes de desmaiar. O mordomo, assim como a patroa, não se apercebeu
desse cheiro. Bom, eu também não notei nada de especial. O meu amigo pediu silêncio
e por alguns instantes, absorto no pensamento, parecia querer ver para além
da parede, tal forma havia fixado os olhos nela. E contudo, creio que nada
via. Ao cabo de uns cinco minutos, proferiu as palavras que vos passo a
descrever, havendo a minha impaciência dado lugar a uma terrível espectativa.
– Amanhã mesmo, marque um
almoço com a viúva, no qual sejam servidas couves como acompanhamento ao que
a dotada cozinheira quiser. Chegámos à “mansão” dos
Costa pelas 11 horas. E enquanto circulávamos, devagar, pela estrada de terra
batida à volta da imponente casa, o inspector
Carlos descrevia-no-la. – Aqui é a sala de jantar,
por cima é o quarto, depois, à direita no piso térreo, é a porta de entrada,
segue-se à direita o escritório, que faz a esquina da casa, ao lado, e a completar
toda a largura da casa, é a biblioteca. A cozinheira fica nas traseiras,
aqui, e de permeio há uma dispensa e uma casa de banho. Um cordial mordomo
abriu-nos a porta e convidou-nos a entrar, após o que se dispôs a mostrar a
casa. – Desculpem a minha rouca
voz. – Disse o sr. Alberto enquanto arrumava os
nossos casacos. – Este maldito tempo não perdoa quando se chega a esta idade.
– Acrescentou. Um vulto preto desceu as
escadas revelando-nos o seu rosto a escassos dois metros. Percebemos
imediatamente de quem se tratava, mas não pelas joviais feições a que Carlos antes
se referira. Clara trazia estampada no rosto agora cadavérico a mágoa por que
havia passado. Após uma rápida visita à casa, já o grande relógio da sala de
jantar anunciava as 12 badaladas que para nós tinham o significado de almoço.
Encontrávamo-nos sentados à
volta da grande mesa oval da sala de jantar quando o sr.
Alberto e a sra. Rosa entraram, cada qual
acompanhado por uma terrina. E eis que ao primeiro indício que ia ser servida
a sopa: – Acho que podemos dispensar
o caldo! Passemos ao prato. – Ecoou vivamente Heitor, para prosseguir: – Não
me leve a mal, estimada D. Rosa, mas não percorri 70 km para apreciar a sua
sopa. A sra.
Rosa poderá não ter gostado, mas pelo menos não o mostrou, em vez disso, recolheu
à cozinha e pouco depois entrou, desta vez exibindo um excepcional
naco de carne estufada. Heitor, por seu turno, estava muito concentrado
olhando o sr. Alberto, que estava a servir os
legumes. Os olhos esbugalhados quase lhe saltavam das órbitas quando chegou a
sua vez. Não perdeu tempo a cravar a faca nos vegetais. – Excelente!!!
D. Rosa, você é uma artista. – Exclamou. – Permita-me senhor Heitor.
A couve não é o ideal neste caso, pelo que achei melhor juntar um pouco de
repolho e cenouras. Eu até era para fazer rolo de carne, mas, à última hora,
apercebi-me de que o cordel de cozinha tinha acabado, pelo que simplesmente
estufei a carne. Foi o caos. Com esta última
afirmação da cozinheira, Heitor soltou três fortes e isoladas gargalhadas,
após o que solicitou que brindássemos à solução do caso, perante o olhar incrédulo
dos presentes, eu inclusive. |
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© DANIEL FALCÃO |
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