Autor Data 8 de Maio de 1994 Secção Policiário [149] Competição Torneio Rápidas Policiárias
1994 Prova nº 11 Publicação Público |
EM TROCO DE NADA Júlio Penatra Lembro-me perfeitamente
desse tempo em que, depois das aulas, passávamos horas esquecidas naquele
jardim, algumas vezes passeando de um lado para o outro e, outras, sentados
entre o arvoredo, aos pares de namorados, como se fossemos gente crescida. Já
nesse tempo, na verdura dos seus doze anos, se destacava a suave beleza de
Dulce. É desse tempo a paixão do Oto por ela. Coitado. Sempre foi um tímido
com as mulheres. Que inveja ele tinha do Adolfo! Um alvarenga sem maneiras. É
certo que o Oto era um pouco agreste, mas no fundo era um rapaz polido. Parece que ainda o estou a
ver pendurado no seu “papillon” à terça-feira, quando íamos comer à cantina.
Estendia o guardanapo sobre os joelhos e com o garfo firme na mão direita
cortava, cerimoniosamente, pedacinhos de bife. O Belo também tentou a sua
sorte mas, que se saiba, nunca foi bem sucedido. Já naquele
tempo tinha este feitio. Parece que ainda o estou a ouvir: senão, digo à tua
mãe. Ganhava-nos sempre às cartas mas no bilhar tínhamos a nossa desforra.
Nisso, o melhor era o Oto. Ainda parece que o estou a ver com a perna
esquerda estendida sobre a tabela e o taco bem apoiado entre o indicador e o
dedo médio direito a tirar uma às três tabelas que nos valeu cem paus. Nesse
jogo perdeu o Belo a mesada e o Adolfo um pouco do seu altivo ar germânico. Juntos sonhámos e juntos
crescemos. Seis anos depois, Dulce e Adolfo pareciam cada vez mais
apaixonados. Oto ia-se tornando cada vez mais infeliz e introvertido. Belo
foi-se aperfeiçoando nas cartas e na faca. Sempre afável, apaixonou-se pelas
letras e, sobretudo, tornou-se um mais perfeito chantagista. Um dia, porém, as coisas
mudaram profundamente. Chegou o Guerreiro. Era um “bon
vivant”, aventureiro e experiente na vida, mais velho quase oito anos. De palavra fácil e boa figura, cedo
partiu, levando Dulce consigo. Correu o mundo inteiro, mas a trabalhar nem
ele poderia fazer aquela fortuna. Tem interesses na Bolívia e na Birmânia
também. Regressou há dois anos. Disseram que vinha estabelecer-se
definitivamente por cá. Adolfo era agora um frio e
inteligente jogador, amante da boa vida, dos carros e mulheres bonitas, e
tornara-se um precioso colaborador de Guerreiro. Rendido de novo aos
encantos de Dulce, preso por aqueles olhos azuis, parecia ter agora mais
sucesso do que há vinte anos atrás. O Belo nunca dormiu em serviço, agora de
porte elegante e atlético, guarda-costas de Guerreiro, há muito que os tinha
debaixo do olho. Quanto a Oto, entrado
recentemente ao seu serviço, estava mais perto dela, mas continuava preso às
suas limitações. Eu, por mim, mantive-me
afastado. Por vezes, sentava-me num banco do jardim e, de longe, via-os
entrar e sair daquela bela mansão. O Guerreiro, ao comprá-la, quis mostrar
que, apesar de mafioso e pouco letrado, tinha bom gosto e não gastava o
dinheiro à toa. Na biblioteca, tinha mesmo uma valiosa colecção
de obras de arte, como aquele artístico conjunto de peças de xadrez que
utilizava para vencer os seus adversários que, amiúde, convidava lá para
casa. Naquela noite, límpida e
quente, deixei-me ficar por ali até mais tarde. Na minha frente, por entre as
árvores do jardim, recortava-se a silhueta daquela bela casa. A porta
principal, na frente, em madeira trabalhada, era ela própria uma obra de arte
ofuscada pelas sombras da noite. Com uma pequena flexão do tronco para a
minha esquerda via perfeitamente a porta lateral, de serviço, a que a luz da
lua realçava os entalhes. Dulce e Adolfo, muito ternos, aproximaram-se cautelosamente,
perdendo-se no interior pela porta lateral. Discutindo em voz alta, parecia
que o Belo e o Guerreiro não se estavam a entender quando, um quarto de hora
depois, entraram pela porta principal. Hoje é dia de reunião.
Murmurei, quando vi que pela porta lateral o Oto se preparava para entrar.
Eram dez e meia. Pensei: – Boa hora para eu ir dormir. Ao passar pela sombra
junto à casa, após se acender a luz no primeiro piso do quarto da Dulce, ouvi
um grito feminino contido, mas angustiado. Rapidamente, afastei-me do
local e, embrenhando-me na sombra, voltei ao banco em que havia estado
sentado e de onde podia observar a casa sem ser visto. Mal me tinha
instalado, vi sair pela porta da frente aquela atlética silhueta. Avançou com
passos seguros e, quando passou num local mais iluminado, vi bem o sorriso
sarcástico e o olhar matreiro que lançou para a janela que entretanto se
fechara e ficara às escuras. É curioso como observarmos
certas cenas sem sermos vistos nos pode provocar tanta excitação. Confesso
que o meu coração bateu mais apressadamente quando, instantes depois, pelos
cabelos loiros, reconheci o indivíduo que, saindo cautelosamente de casa, procurava
esgueirar-se o mais rapidamente possível no escuro sem se dar a conhecer. O tempo
passava aguçando-me a curiosidade. Eis senão quando, pude ver, claramente, já
na rua, aquela figura tão familiar que, saindo com ar despreocupado, de mãos
nos bolsos se afastava da porta rodeando a mansão. Quando a polícia entrou na
biblioteca, no piso térreo, ainda o Guerreiro se encontrava caído sobre o seu
lado esquerdo, cabelos negros revoltos sobre a mesa de jogo, músculos tensos,
numa morte rápida. O corta papel, espetado nas
costas, tinha penetrado junto à omoplata, entre a 5ª e 6ª costela, quase atingindo
o tecido cardíaco. Praticamente pouco sangrou. À sua direita estavam
perfilados os bispos e outras peças pretas que havia tomado. Em frente
destas, alinhavam-se aquelas que o adversário lhe tinha “comido”, junto às quais
dois cinzeiros continham ainda vestígios de cinza e dois cálices de vidro se mantinham
semi-cheios com os restos das bebidas que não
tinham acabado de tomar. No ar pairava ainda um estranho aroma a alfazema. Teria jogado com as
brancas. O seu rei avançara até 2BR, a rainha para 4TD e um peão para 3CR. Do
outro lado, o rei estava em 1R, erguendo-se as torres pretas em 7D e 6R,
apoiadas pelos dois cavalos em 6BR e 8D. A porta de saída da
biblioteca para a escada que conduz ao primeiro andar estava fechada à chave
pelo lado de fora e na ombreira esquerda da que dá para a saída lateral,
junto à fechadura, ficaram marcados os vestígios de nós de dedos sujos de
sangue ainda recente de quem, na pressa, a empurrou para sair. Numa moita de
lavanda, nas traseiras da casa, foi encontrado o par da luva direita que
aquele gesto inconsequente do criminoso manchara de sangue. Só eu sei que à hora do
crime todos se encontravam naquela casa e que uma estranha cumplicidade os
impede de falar. Mas como é possível
pensar-se que tamanha evidência poderia passar despercebida? Quem cometeu o crime? A – Foi Dulce por sufocação
e por engano; B – Foi Belo, a tiro e por
frustração; C – Foi Adolfo, por
esfaqueamento e por acidente; D – Foi Oto, por
envenenamento e por ciúme. |
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© DANIEL FALCÃO |
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