Autor Data 26 de Dezembro de 2004 Secção Policiário [702] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2004/2005 Prova nº 3 Publicação Público |
ENFORCADO NA IGREJA Karl Marques 1963. Terça-feira.
Setembro. Cheguei à aldeia pelas 18h00 e dirigi-me à igreja local. Dimensão
relevante, do séc. XII, mas com altares de talha dourada muito ricos, talvez
pagos com o que veio do Brasil. Fala-se que numa reconstrução foram usadas
algumas pedras que haviam sobrado do Convento de Mafra. O próprio padre,
aparentando serenidade, mas claramente preocupado, conduziu-me a uma sala
anexa à igreja, à direita desta. E lá estava o corpo
pendurado junto à porta da sacristia com o nó de enforcado ao pescoço. Sala rectangular, cerca de sete por cinco metros. Apenas
quatro mesas, dois assadores, alguns armários encostados às paredes,
bandeirinhas em papel da festa da aldeia (que ocorrera na semana anterior) e
um número considerável de castiçais. Tirando as bandeirinhas, tudo muito
velho. As cadeiras, disse-me o padre, tinham sido
todas emprestadas essa manhã para um espectáculo de
teatro. Ainda uma caixa de ferramentas. Três portas: para a rua, mesmo ao
lado da porta da igreja, outra para a igreja e a outra para a sacristia. Duas
janelas, cada uma a meio de uma das paredes sem porta. Mas enfim, não merecia
a pena estar a olhar muito, aquilo gritava suicídio. Mãos completamente
soltas, pulsos sem quaisquer marcas que pudessem indicar que tivessem estado
amarradas. Unhas limpas e roupa impecável. Nenhum sinal de luta ou agressão.
Aproximei-me, já vira outros suicidas, a expressão era semelhante. Mas eu
estava ali em baixo! E não havia nada no raio de dois metros. O caso mudava
de figura. Abaixei-me: o chão parecia limpo. Toquei com a mão… apenas
pequenas partículas que se encontravam no intervalo dos tacos de madeira.
Talvez ferrugem. Olhei em volta e não vi mais nada de relevante. Cheirava a
limpo e na década de 60 ainda não havia produtos para deixar uma retrete a
cheirar a rosas… – Está bem limpo… – É a D. Maria que limpa
com grande esmero. É a mãe do rapaz – apontou para cima, sem olhar o corpo. – Quem é ele, que fazia,
família? – Pedro Sousa, julgo que 24
anos, fazia uns biscates agrícolas, solteiro, vivia
com a mãe. Os irmãos estão por Lisboa. – Sabe quem o quereria
matar? O rosto esboçou uma ténue reacção, mas que consegui notar. – Não. – Vinha aqui muito? – Não o via na igreja há
anos, se não contar com casamentos. – Como veio aqui parar? – Ignoro. Não encontrei mais nada
relevante. Tinha três pessoas para interrogar: o padre, o sacristão (que
encontrara o corpo) e a D. Maria. Tinham-me dado uma hora: morto pelo menos
desde as 11h00. A autópsia viria a esclarecer-me as últimas dúvidas. O padre vivia numa casa
anexa do outro lado da igreja e, além dele, só a D. Maria e o sacristão
tinham as chaves da igreja e da sala. Quando saía, deixava as chaves em casa.
O padre vivia sozinho, embora o seu irmão, de 21 anos, estivesse a passar com
ele uns tempos. Fora à sé (a cerca de 35 km), e estivera em entrevista com o
Bispo a partir das 10h00, tendo almoçado na sua companhia. Chegou pelas
16h20, quando o sacristão acabara de descobrir o corpo. Sobre o sacristão
disse-me que se tratava de um bom homem, 70 anos, viúvo e profundamente
religioso. Não sabia de qualquer problema com a vítima. Da mãe do morto
disse-me ser uma senhora viúva com 64 anos, muito religiosa. Sobre a relação
dela com o filho alegou segredo de confissão. O sacristão tinha um aspecto vigoroso. Estivera de manhã a abrir as portas a
quem vinha buscar as cadeiras. Saíram todos pelas 10h15. Foi o último a sair,
mas nunca esteve sozinho. Voltou pelas 16h15 e viu o corpo. Estava sem saber
o que fazer quando chegou o padre. Entre as duas visitas à igreja estivera em
casa. D. Maria chegara quando ele ia a sair da igreja para chamar a polícia,
não foi capaz de disfarçar o embaraço e não conseguiu segurar a senhora antes
de ela entrar na sala. Quando viu o filho a senhora ficou em choque: “O que
lhe fizeram! Que fizeram? Ai meu Deus, o meu filho”. Não sabia nada das
relações do rapaz com a mãe nem com as outras pessoas (“muito metido
consigo”) e não falava com ele há anos. Não era capaz de precisar se havia
modificações na sala, pois tudo havia sido remexido enquanto tiravam as
cadeiras. As chaves andaram sempre com ele. D. Maria tinha um aspecto frágil e estava muito abalada. Tinha ido de
comboio visitar uma irmã que fora avó pela primeira vez. Saíra pelas 7h15 e
só chegara à aldeia pelas 11h50. Fora para casa e só saiu quando viu o padre
a dirigir-se para a igreja (vivia ali ao pé). Tinha deixado as chaves em casa
(“estavam na cozinha, onde tinha deixado”) e perguntei-lhe se conhecia alguém
com razões para querer matar o filho e ela disse-me que não. Perguntei-lhe
por namorada, hesitou um pouco, e em seguida disse-me que havia uma
desavergonhada que o tentava. Tentei saber mais, mas ela deu uma resposta
estranha: “Fale com o padre… pergunte-lhe por aquilo que ele tirou.” Como o sacristão ainda
estava por perto, perguntei-lhe se ele dera por algum objecto
na sala que entretanto tivesse desaparecido. Embaraçado, disse-me que tinha a
ideia de um lenço no chão. Não ligara, pensara que fora suicídio. Fui procurar o padre e
confrontei-o: – O sacristão lembra-se e a
D. Maria viu-o a tirar um lenço. Onde está o lenço senhor padre? – Viu-me? Como? Bem, aqui
está! O lenço era alaranjado, de
seda. – Porque o tirou? – Pergunte à D. Maria: ela
parece saber tanto sobre ele! Virou-me costas, sem mais!
Há 40 anos um padre era um padre… – Era disto que falava? – Foi isso que ele tirou. – De quem é? – É de quem enfeitiçou o
meu filho! O padre tirou-o porque sabe que anda metida com o irmão. Bem tenta
falar com ele, mas o rapaz está sempre a pecar com ela. Sei, porque já encontrei
coisas dela no quarto dele. Por isso o padre já tinha falado com ele para se
ir embora já este sábado! – Quem é ela? – Maria das Colheitas.
Casada! Ela é que o matou! Se o senhor soubesse como eu fiquei quando o vi! O
sol a bater no seu rosto tão terno… – E porque é que ela o
teria feito? – Demónios precisam de
motivos? Tenho a certeza que foi ela! Muito alterada, de momento
não ia saber mais nada de relevante por ela. Segui até à casa paroquial. O
padre abriu-me a porta, já mais calmo. Perguntei-lhe pelo irmão ao que ele me
disse que estava a ultimar os preparativos para se ir embora no dia seguinte,
como já estava planeado. Era um rapaz de altura mediana, fisicamente robusto. – Pode-me fazer um resumo
do seu dia? – Estive a dar uns passeios
pelos campos. Saí por volta das dez e só voltei pelas 15h00. Nem almocei! Por
vezes a meditação solitária faz esquecer as básicas necessidades da
existência humana… – Conhece este lenço? – Não sei… não me parece.
Meu não é! – Conhecia o rapaz que foi
encontrado aqui ao lado? – O meu irmão contou-me.
Não conhecia. Julgo que nunca o vi. – E Maria das Colheitas?
Conhece? – Costumo emprestar-lhe
alguns livros quando cá estou. Porquê? – Viu-a hoje? – Não. A meu pedido indicaram-me a
casa de Maria das Colheitas. Jovem e visualmente
agradável, disse-me que conhecia Pedro, mas que já não o via há meses. Fora
apaixonado por ela mas nunca lhe correspondera. Negou categoricamente,
parecendo ofendida, qualquer relação. Perguntei-lhe pelo irmão do padre.
Falou dos livros. Perguntei-lhe se tinha consigo algum, ela disse que não:
ia-se embora e pedira a devolução de todos. Mostrei-lhe o lenço: pareceu
embaraçada, era dela, mas tinha-o perdido. O sacristão tinha-me
emprestado as chaves. No anexo, abri a porta para a sacristia. Havia um curto
corredor e a meio uma porta trancada. Não encontrei chave e pedi-a ao
sacristão. Disse-me que era uma porta que dava para uma pequena despensa. Só
havia uma chave, estava numa gaveta, e podia “demorar a encontrar pois tem
muita tralha em cima”. Até foi rápido. Lá dentro, apenas umas figuras de
presépio empoeiradas, um regador de latão dentro de um carrinho de mão e
castiçais velhos. Peguei a medo no regador (aracnofobia) para afastar o
carrinho, para ver o que havia atrás, mas não vi nada. Naquela zona da
despensa nem teias vi ou senti em parte alguma. Já tinha uma ideia do que
acontecera. |
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© DANIEL FALCÃO |
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