Autor Data 5 de Setembro de 1999 Secção Policiário [425] Competição Prova nº 2 Publicação Público |
APARECIMENTO INOPORTUNO K. O. Dedicado
a Severina Pela calada da noite, estacionaram
o carro a uma distância prudente do apartamento dela. Dirigiram-se para lá –
corações em sobressalto – em passadas comedidas. Quando ela abriu a porta da
rua, ele olhou para todos os lados. Ninguém. Subiram pé ante pé ao 1º andar.
Entraram em casa. Iam só buscar umas roupas
indispensáveis para ela. Não podiam demorar-se. Se o marido aparecesse, o
problema seria verdadeiramente grave. Ela ainda sentia no corpo os últimos
golpes; as marcas das sevícias estavam bem visíveis por todo o corpo. O marido
era de uma violência inultrapassável. E de uns ciúmes loucos. E quando bebia
– e bebia muitas vezes, quase diariamente –, nada nem ninguém o conseguia
enfrentar, muito menos conter. À menor suspeita, zurzia nela. Batia primeiro
e nem perguntava depois. Tentara já separar-se, mas vira-se obrigada a
regressar à casa comum devido às ameaças dele. Com este seu novo amigo – o
que a acompanhava nesta noite, em cuja casa procurara refúgio –, e era então
apenas um amigo, nada além disso, houvera grossa bernarda uma vez em que os
encontrara juntos num café. O marido agredira-a e agredira o outro quando
este tentara intervir. Tinham ido todos parar à esquadra. Uma vergonha para o
outro, que fora identificado a preceito e ficara com ficha. Mas nem por isso deixara de
a apoiar. Graças a Deus. Com estes pensamentos bailando-lhe na cabeça, ia
deitando umas roupas num saco, rapidamente. Ai se o marido aparecia! E apareceu. Bastão de
basebol na mão (não que jogasse este jogo, mas como arma de agressão que
sempre o acompanhava), meio toldado pelo álcool. Ao vê-los, gritou logo,
enfurecido: ‘Eu bem sabia, minha cabra. Cá estás tu com o teu amante. Nada te
serve de emenda. Tens de levar nova dose, a de ontem não te chegou. E esse
sacana também!’ Balançou violentamente o bastão
para acertar no corpo dela, mas, ébrio como estava, não acertou na rapariga e
desequilibrou-se. O rapaz aproveitou a oportunidade inesperada e aplicou-lhe
potente soco no queixo, o que o fez cair largando o bastão. Levantou-se,
desengonçado, resmoneando ameaças. E atirou-se violentamente ao rapaz.
‘Vou-te matar!’, gritava. O rapaz agarrou então no
bastão e deu-lhe forte pancada na cabeça. O outro caiu, cabeça aberta. Teve
morte imediata. Rapaz e rapariga
entreolharam-se. Aquilo não estava nos seus planos. O destino virara-se, uma
vez mais, contra ela. E também contra ele. Ia ser acusado de homicídio.
Talvez não premeditado, mas da cadeia ninguém o livrava. Ele há dias… Então, a rapariga disse:
‘Vai-te embora, desaparece. Não podes ser encontrado aqui. Seria o teu fim. A
mim não, não me vão condenar. Será legítima defesa. Terei todas as
atenuantes, atendendo às constantes sevícias de que era alvo por parte dele.
Vai, anda, encontro-me contigo na tua casa.’ E tirou-lhe o bastão das mãos. O rapaz ainda hesitou um
pouco, mas lá saiu porta fora, sem olhar para trás. A rapariga ainda esperou
uns minutos. Depois, discou o 112. Dias depois, a rapariga é
interrogada por um investigador da Judiciária. Descreve a cena do
aparecimento do marido quando metia alguma roupa no saco, fala das ameaças e
da tentativa de agressão. Repete a história das sevícias que há tanto tempo
se prolongavam. Sem falso pudor, mostra as marcas pelo corpo todo. O investigador é
compreensivo com a situação. Humano. Mas conclui: ‘A senhora podia ter as
maiores razões de queixa do morto, poderia ter todas as justificações para
lhe bater com o bastão em legítima defesa. Mas não está a contar a verdade, a
verdade toda. Não só não estava sozinha quando o seu marido apareceu, como
foi outra pessoa que o agrediu.’ Nós, que conhecemos a
história toda, sabemos que o investigador está coberto de razão. Mas
precisamos de saber em que dados ele se baseou para emitir aquela afirmação. Solicita-se, pois, aos
decifradores que nos dêem conta do raciocínio do investigador que lhe
possibilitou produzir uma tal conclusão. |
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© DANIEL FALCÃO |
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