Autor Data 21 de Setembro de 1978 Secção Mistério... Policiário [184] Competição Torneio
“4 Estações 78" | Mini C – Verão Problema nº 6 Publicação Mundo de Aventuras [260] |
DUAS MORTES EM ALGÉS L. P. Caro
colega: Espero
que tudo lhe decorra como pretende. Por aqui, muito trabalho. Ainda para mais, crimes!... Hoje, peço-lhe sugestões para
um caso que tenho entre mãos. Vou descrever-lhe o que se passou: Aqui,
em Algés, vive uma família riquíssima, num palacete com jardim, piscina,
pequeno bosque, etc. O proprietário é o sr. Manuel
Rodrigues, que vive com os seus sete filhos: o José, o Carlos, o Joaquim, a
Marília, a Ana, o Armando e a Teresa. Ora, na manhã do dia 23 de Agosto,
houve troca de tiros de que resultou a morte do proprietário e de seu filho
mais velho, o José. Passou-se mais ou menos assim: 1
– Às dez horas e trinta e cinco minutos, recebi uma chamada telefónica do
mordomo, que contava, a chorar, que o seu amo e o filho mais velho tinham
morrido. Mortos a tiro. 2
– Às dez horas e cinquenta minutos, já eu dera entrada no enorme casarão. Fui
conduzido ao local do crime. 3
– Ao abrir a porta (o mordomo fechara-a para que ninguém mexesse em nada,
embora a encontrasse encostada), deparei com o corpo do sr.
Manuel, a cerca de dez metros de mim, deitado de ventre no chão, com a cabeça
dirigida para os meus pés. O rosto mostrava sinais de terror. Vestia um
roupão de cor verde, sem bolsos exteriores, de trespasse, totalmente
abotoado, que, mais tarde constatei estar ensopado em sangue, mais ou menos à
altura do coração, talvez um pouco mais acima. A mão direita pousava, como
uma aranha, sobre a coronha de uma pistola de calibre 6,35 mm. Pelo exame da
pistola, constatei que disparara dois tiros. Por baixo do roupão, o sr. Manuel estava vestido com uma camisa branca, muito
fina, aberta no colarinho. Muito embora o seu gosto a vestir fosse
requintado, tinha o hábito de trabalhar sempre com o roupão, no seu
escritório. Quando estava calor, dispensava a gravata, como era o caso
presente, mas, como andava muito constipado, abotoava sempre o roupão até
cima. Por
cima da camisa, um pouco abaixo do sovaco esquerdo, usava o coldre da sua
arma, quer fosse a comer, a passear, a trabalhar… e mesmo para dormir,
punha-a minuciosamente preparada e à mão de semear, debaixo da travesseira.
Confirmei a sua existência no citado lugar. 4
– A uma distância de 5 metros de mim, isto é, a meio caminho entre o corpo do
pai e a porta onde eu me encontrava, estava deitado o José, com o flanco direito
no chão, de joelhos dobrados e tendo entre os dedos (bem cerrados) a coronha
de uma pistola do mesmo modelo da do pai. José, era um homem forte, há doze anos na Marinha, como
oficial. A sua cabeça, dirigida na minha direcção,
mostrava uma ausência de expressão. No seu lado direito, vi desenhada na
alcatifa uma mancha de sangue, que fez lembrar uma foice (a parte cortante),
com os bicos lançados para os pés e para a cabeça. Tinha um aspecto parecido com o de uma lua em fase de quarto-minguante.
Em cada uma das extremidades (bicos) dessa lua ou foice, havia uma grande
mancha de sangue de forma circular, maior a que se encontrava mais próxima de
mim. Dois
tiros nas costas. Um, que entrava pelo centro das costas, talvez tivesse
atingido o coração. Não saíra. O outro, no flanco direito, enviezado, deve ter atingido a coluna vertebral. As
marcas de sangue que descrevi, provinham deste
ferimento. Do outro, apenas uma massa de sangue, colada às costas, colorindo
a camisa desportiva que envergava. Havia sinais na alcatifa, como se o José
se tivesse tentado arrastar para a porta, com auxílio das pernas. 5
– Dos exames balístico e médico, extraí as seguintes
conclusões: a)
O projéctil encontrado em José, junto ao tórax, não
havia perfurado o coração. O outro, alojara-se na
coluna vertebral. Ambos foram disparados pela pistola encontrada junto ao
pai. Não se pode precisar se a morte fora imediata, tudo levando o crer que o
não fora; b)
O tiro que atingiu o proprietário, não perfurou o coração, passando no
entanto, muito perto. Atravessou todo o corpo, indo cravar-se na pesada
secretária. O projéctil de lá extraído, foi realmente disparado pela 6,35 que estava na mão de
José. Não se pode precisar se a morte foi instantânea, tudo levando a crer
que sim. Possibilidades de ainda ter podido disparar, bastante remotas, mas
possíveis, devido ao facto de o estado de espírito nestas ocasiões, conseguir
prodígios. c)
Morte de ambos: entre as dez horas e as dez e trinta. 6
– Testemunhos colhidos, conforme mandam as regras, isto é, em separado: a)
Carlos – Estive na piscina. Aliás, como todos os meus irmãos. Fizemos
competições. Nessa meia hora… sim, estive lá com o Joaquim e a Ana. Nadámos
mais um bocadito… Fomos alertados pelo mordomo… Não ouvi nada de anormal. Não
gostava do «velho», mas não era capaz de o matar. Bem, quanto ao «sr. oficial da Marinha», tinha a
mania que era o «bom» da família. b)
Joaquim – A essa hora, deixe ver… sim, estive na piscina. Com o Carlos e a
Ana. Nada ouvi. Aliás, como pode ver, a piscina fica longe do escritório do
pai. Era insuportável… Sempre com novas manias… O José,
era como ele. Era o «sr. oficial».
O menino de seu pai!!! c)
Ana –Estive com o Carlos e o Joaquim na piscina. Os
outros tinham ido a qualquer lugar. Nada ouvi. Não gostava do pai… O José,
bem… esse era só peneiras. Mas não era mau rapaz. d)
Armando - Eu saí da piscina com a Marília, eram para aí… dez e dez ou dez e
um quarto, não sei bem. Como não posso nadar, por causa de uma deficiência
que tenho desde criança no braço direito, fui para o meu quarto ouvir música,
assim que eles acabaram os campeonatos. O «velho» não me podia ver! Ele
queria que eu fosse como o José, mas, não via que eu mal podia mexer o braço.
Era incapaz de ver que eu não tinha culpa. O meu irmão era o menino bonito do
«velho». Por isso era peneirento e hipócrita. Não,
não ouvi nada. e)
Marília – Saí com o Armando, da piscina. Fui tomar banho, pois tinha um
encontro marcado para as 11 horas, em Lisboa. Fui para a casa de banho.
Embora a casa de banho fique no mesmo corredor que o escritório, a verdade é
que não ouvi nada. Talvez por causa do barulho do chuveiro. Não, não gostava
do «velho»… era muito severo. Vivia noutra época. O
José, esse não era mau tipo, embora muito orgulhoso. f)
Teresa – Saí da piscina por volta das dez e cinco. Fui lá para trás (apontou
para a retaguarda do casarão) ver os meus cães (tinha três grandes pastores
alemães). Aproveitei para dar dois dedos de conversa ao jardineiro, que tem a
mulher doente. Quando cheguei a casa, dei com o Pedro, o mordomo, a berrar e
a correr esbaforido… Não gostava do meu pai por ser muito antiquado… O meu irmão,
era «quase insuportável»… Nada ouvi. g)
Jardineiro – Sim, estive a falar com a menina. Eram umas dez, dez e pouco… Falámos
durante quase um quarto de hora. Depois ela foi ver os cães e não a vi mais.
Não ouvi, nem vi nada. h)
Pedro, o mordomo – Fui ao escritório levar o pequeno-almoço ao senhor. Como
sempre, eram precisamente dez horas e trinta minutos. E deparei com aquilo
(chora). A porta estava, como é hábito, encostada. O senhor era uma pessoa
muito difícil e creio que nenhum dos «meninos» o chorará… Tinha uma mania
terrível, que consistia em estudar as origens da sua família. Descobriu, por
exemplo, que nunca tinha havido um inválido na família. Por isso não gostava
do «menino» Armando. Passava a vida a dizer que desde que ele conhecia a
história do família, desde 1700 e tal… Por outro lado, a «menina» Teresa
queria casar com um rapaz de Oeiras, mas, o senhor proibiu-a… Nunca soube
porquê! A «menina» Marília, gosta muito de cinema, mas, o senhor berrava com
ela, dizendo que desde 1700 e tal que a família tinha passado sempre sem
cinemas… E assim por diante. Tinha um génio terrível! Eu,
conhecia-o perfeitamente… Desde o nascimento do «menino» José, era de quem o
senhor mais gostava. Talvez porque tinha sido também oficial da Marinha… Via
no filho a sua imagem, anos antes. Mas, o senhor andava muito desconfiado
ultimamente! Imagine que fez um alarido tremendo quando a sua arma se
encravou, já lá vão duas semanas. Saiu nesse dia, tão furioso que nem avisou
o motorista. Eram para aí umas quinze horas… Só regressou às vinte e duas
horas. Não disse nada a ninguém, mas eu ouvi-o a experimentar a arma… Ouvi
uns «clicks»… Mas, espere lá! O senhor tinha naquele armário a
licença. Venha ver!... 7
– A licença tinha o número da arma: 658391. O número da arma encontrada
debaixo da sua mão tinha o número 650004. Não conferia, pois. Consultei o
ficheiro da Judiciária e não figura qualquer arma com este número. Uma arma
clandestina. Nem no ficheiro das importações de armas de defesa. Penso, pois,
que ele terá ido a um armeiro de poucos escrúpulos, onde mandou consertar a
dele… Provisoriamente, o armeiro deve ter-lhe dado uma que não pudesse vender
legalmente. A troca definitiva, parece-me impossível…
O armeiro não se ia arriscar a ser descoberto, no caso do sr.
Manuel a tentar legalizar. E
pronto, meu caro colega! O meu chefe é de opinião que se deve arquivar o
processo, rotulando-o de «Crime Recíproco»… Mas, eu
não o creio. Há algo que não bate certo. Por isso lhe peço o seu auxílio,
esquematizando a resposta nestes dois pontos: 1
– Acha que o chefe tem razão no «carimbo» a atribuir a este caso? 2
– Explique-me o seu raciocínio, o mais pormenorizadamente possível. |
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© DANIEL FALCÃO |
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