Autor Data 1 de Outubro de 2008 Secção Competição Problema nº 2 Publicação O Almeirinense |
UMA LÁGRIMA NO ROSTO DA RAINHA… L. S. A
claridade da manhã tomara conta da cidade duas horas antes. Ainda tudo
dormia! O
doutor Santiago, solicitador, vestindo a rigor aquele fato especial reservado
só para os grandes momentos, ia meditando na sua tarefa desse dia, à medida
que avançava no empedrado. Não podia perder o negócio do novo registo de
propriedade na Comissão de Valores Imobiliários do edifício dos CTT, na
capital, pois o cliente, gente poderosa, especulativa mas boa pagadora para
os seus mais serviçais colaboradores, deixara bem fincada a decisão de em
dois dias se proceder, sem falta, ao registo. Por isso, o doutor agarrava na
sua mão direita a pasta, com firmeza, apesar da corrente que a prendia ao
pulso, qual algema posta a condenado. Ao
longo da Rua Adelino Veiga, lugar habitual das meninas de vida fácil, também
deserta, silenciosa, a sua cabeça martelava na mesma ideia que o fazia, tão
cedo, seguir até Lisboa no trem mais rápido da manhã – “O negócio do ano!” O
seu escritório e os dois colaboradores estagiários igualmente veriam assegurada
ali a sua actividade pois nos últimos tempos a
dificuldade na liquidação do pagamento dos seus salários era a maior dor de
cabeça. Felizmente o panorama parecia, assim, ir aliviar durante uns tempos… Alcançou
os primeiros degraus da escadaria da Estação Nova, subiu-os no compasso
anterior e no patamar, parando por instantes, não pode deixar de reparar em
dois paisanos de capa e batina dormindo, a sono solto, mais abaixo no lado
dos degraus contíguo à parede do edifício, ombro com ombro, e em seu redor
várias garrafas de cerveja, vazias. “Ainda traços da Queima das Fitas da
véspera”, pensou para os seus botões… Apreciou o
lixo existente ao longo da Emídio Navarro até onde os seus olhos alcançavam –
“os almeidas naturalmente tiraram a noite, ter-se-ão unido à festa”,
equacionou – lançando também uma mirada para os dois táxis parados na praça,
único sinal aparente de vida activa, a massa de
água do Bazófias calma e acolhedora da cidade, a Ponte e mais além Santa
Clara com a Igreja da Rainha abençoando da colina, no seu vulto imóvel e
secular, todo o casario em redor. Entrou
para o átrio da Estação, virou ao espaço localizado à esquerda onde se
refugiava uma das bilheteiras servindo os viajantes e adquiriu o bilhete para
Lisboa. Quando a sua figura se perfilou na porta interna do cais aos seus
olhos apareceram, de frente, as duas linhas do comboio vazias. A ligação
estaria por minutos a chegar. Uma necessidade sentida desde há minutos fê-lo
encaminhar-se para a gare direita, era aí a WC e ao passar por uma porta
cerrada contendo a indicação superior de “Chefe da Estação” apreciou o corpo
de um vagabundo dormitando encostado a uma das ombreiras, vestido de casacão
muito surrado e de face suja de barba de vários dias, remoendo os maxilares
qual bovino mastigando. A casa de banho largando um odor fétido a urina e a
falta de asseio encontrava-se mergulhada numa semi-obscuridade
pouco recomendável a quem gosta de se servir sem arriscar um pé numa poça de
líquido imundo, e não lhe agradando o que observara dos mictórios e do odor
também dali exalado optou pelos compartimentos. Abriu um deles, viu e sentiu
possuir higiene mínima desejável, segurando a porta com o braço esquerdo, zip
abaixo, começou a aliviar-se. Estava nisso quando subitamente sentiu a porta
deixar de pressionar o braço e sem ter tempo de se virar para perceber o que
a continha o frio de uma lâmina entrou nas suas costas, acutilante. Numa fracção de segundos viu fugirem-lhe as forças e a reacção, as ideias turvarem-se, e sem um ai caiu de borco
para cima da sanita, enrolando-se o corpo sobre si mesmo. A
Judiciária alertada de imediato fez deslocar para ali um grupo de
investigadores chefiados pelo Inspector Artur M.
(orgulhava-se desse tratamento) e a primeira decisão foi a de mandar fechar a
Estação Nova à curiosidade do público. Executados os procedimentos adequados
na recolha de vestígios biológicos, lofoscópicos e
outros, de acordo com o Perito Médico-Legal efectuou-se
o levantamento do cadáver do doutor Santiago para o IML. Enquanto a autópsia
não era realizada procedeu M à enumeração dos dados ao seu alcance,
permitindo estabelecer, por exemplo, se encontrarem nas instalações da
estação, a essa hora da manhã, apenas quatro pessoas. O Chefe da dita, Acácio
dos Reis, o cansaço de uma noite mal dormida fizera-o recostar no sofá de um
anexo ao gabinete até à chegada do comboio de ligação para a Estação Velha,
com seguimento, depois, para a Praia da Claridade via Pampilhosa, um
vagabundo dormitando encostado à porta do Chefe da Estação, Apolinário dos Anjos,
o homem dos bilhetes. Manuel Antunes e a empregada da limpeza que chegara e
dera pela existência daquele corpo. Manuel
Antunes foi ouvido num espaço reservado na estação para o efeito,
prestando-se a esclarecer todas as questões e dúvidas dos homens da PJ. –
Seriam, talvez, 6h50, Sr. Inspector, quando se me
dirigiu um senhor todo bem posto a pedir um bilhete de primeira para o Rápido
com destino a Santa Apolónia. Uma vez efectuado o
pagamento do montante e ter aquele cliente recolhido o bilhete, num espaço de
dez minutos não apareceu ninguém mais a pedir bilhete para o comboio. Foi
mais ou menos nessa altura que ouvi os gritos da mulher de limpeza quando
entrou na WC dos homens e viu o corpo daquele senhor, verificando por mim
mesmo tratar-se do tal cliente que seguia para Lisboa. Pude aperceber-me no
meio da pequena alteração à paz da Estação, que o doutor – vim a saber há
pouco de quem se tratava – já não tinha consigo a pasta que levava antes
agarrada ao pulso direito. O
vagabundo atrás mencionado, Apolinário dos Anjos, na realidade um “macaco
velho” de 60 e poucos anos, maltrapilho por desleixe e finório por escola de
vida, era um habitue da Estação. Há anos que fazia dali o seu refúgio pois
sem eira nem beira aproveitava todos os cantinhos possíveis e permitidos para
se aninhar e passar a noite. Contavam-se estórias dele, de mariola, algumas
contas ajustadas nos tribunais da região e um rol assinalável na sua folha
existente na Polícia. Vinha algo assustado e inquieto quando o Inspector o viu entrar na sala escolhida para audição das
testemunhas e intervenientes. –
Então Apolinário, como vão esses ossos? Proferiu M, esticando a mão aberta ao
seu “velho conhecido”, artista do tempo em que ele investigava na área do
furto. Um cheiro a porcaria, forte e cáustico, invadiu a sala. Uma morte a
ocorrer bem ali a teu lado, hein?, meu caro, que sabes tu a esse respeito?
Que tinhas contra o doutor…? –
Eu Inspector…? Eu? Nada! Não tenho nada mesmo a ver
com isso…, dizia ele com os olhos esbugalhados e com a mão esquerda nervosa
segurando algo sob a sua camisola de cor azul escura, muito suja e com
buracos aqui e acolá a aparecerem que o casacão de fazenda muito velha, de um
negro indefinido, tentava cobrir. Tava a dormitar num dos meus locais
favoritos, tive a sorte do Chefe não aparecer senão era corrido dali, quando
acordei de vez ao ouvir os gritos da Dona Adosinda… Coitada da senhora.
Assustou-se e assustou todo mundo que a ouviu. Eu não fui excepção,
pode crer. Levantei-me e lá dentro na casa de banho vi… Olhe, não foi espectáculo bonito de ver. O sangue escorria de onde
apareceu o corpo daquele senhor até a porta aberta. Que coisa terrível! Não
pense isso de mim. Eu não sei de nada. Matar alguém, eu? Inspector,
tenha pena! –
Mau! É estranho uma coisa destas ter acontecido mesmo ali ao pé de ti, e nós
sabemos que santo não és…!, e não teres outra explicação a dar diferente da
“eu não sei nada…!”… Tenta arranjar argumentos para convencer-me a ver se o
consegues… Um menino da tua qualidade? Na…, e foi-se chegando a ele apesar do
pivete inalado do seu corpo. Pegando naquela mão esquerda tão zelosa a
segurar fosse o que fosse sob a camisola, foi-a levantando muito devagar, e
ao mesmo tempo proferindo… Não me digas que te feriste aí? Deixa cá ver o que
tapas com tanto cuidado… O
Inspector M viu o rosto sujo de Apolinário, de dias
sem ver lâmina de barbear, a ficar lívido e os olhos a esbugalharem-se ainda
mais… Era uma carteira de homem que ele segurava com tanto cuidado, de
cabedal preto, com apresentação nada condicente com as condições miseráveis
daquele ser humano. Abriu-a e rapidamente verificou tratar-se da do doutor
Santiago, objecto em falta no momento do exame ao
cadáver. Continha diversos cartões identificativos, bancários e outros
documentos, mas notas de Euro nem sinais… –
Ora então não temos nada a ver com isso, sim senhor…! Explica lá, neste caso,
como se eu fosse muito burro, porque apareces tu na posse desta carteira, de
alguém morto perto de ti há pouco mais de uma hora atrás…? Explica-nos, MAS
CONVENIENTEMENTE!!! P’ra já, despeja sem mais todo
o conteúdo dos teus bolsos, para cima desta mesa. E apontou. O
atrapalhamento do vagabundo era bem visível… No
conjunto de objectos na sua posse incluíam-se um
lenço imundo, um maço de tabaco meio amarrotado com três cigarros, um
isqueiro tipo Bic de cor vermelha, uma navalha de ponta mola e um conjunto de
notas de 10, 20 e 50 perfazendo um total de 150 Euros, inevitavelmente
sacados do interior da carteira do falecido. –
Então!..., questionou M. exibindo as notas numa das mãos qual troféu depois
de conquistado com toda a vantagem sobre o adversário, com um desses sorrisos
que não enganavam ninguém… –
Eu explico Senhor Inspector! Eu explico. Ou melhor,
não sei como explicar… Só lhe posso dizer, esta é a verdade, que quando ouvi
os gritos da mulher de limpeza abri os olhos e vi em cima da aba do meu
casacão esta carteira. Assarapantado com aqueles berros mal tive tempo de a
agarrar antes de me levantar e ir ver o que se passava. Refeito algum tempo
depois daquilo, isolei-me a um canto e vi o seu conteúdo. O Senhor
entenda-me… Não foi por mal mas não consegui resistir à tentação de sacar a
massa… O Senhor sabe que não sei ler, como podia adivinhar? Assegurava. –
A que horas te deitaste junto à porta do gabinete do Chefe? Inquiriu o
Investigador. –
Devia passar muito depois das três da madrugada quando ali me acostei já bem
bebido…, lembre-se que ontem foi a Queima e a cerveja corria à farta, né, respondeu Apolinário. –
E não viste ninguém passar por ti para o WC até ao momento em que a empregada
de limpeza gritou…? –
Para lhe ser sincero, não. Não reparei, na minha sonolência, na passagem de
alguém para aqueles lados, inclusive da empregada… Tenho ideia de ter ouvido
um bater de passos irregulares, do género tap-tloc,
tap-tloc para lá e depois para cá, mas nem sei se
ouvi mesmo se foi no torpor do sono que teria sonhado com tal som… –
Bem, concluiu M, vais é connosco até à Judiciária pois temos de esclarecer tudo
isto melhor… Cheira-me não estares a contar tudo o que sabes desta estória… A
autópsia realizada nessa manhã veio a confirmar a suspeita já detida no exame
ao corpo no local onde apareceu. Um objecto
corto-perfurante entrara no médio dorsal esquerdo e atingira um dos
ventrículos, causando morte imediata à vítima. Parecia ter sido um golpe
executado por mão experiente e sabedora. O Inspector
M fez questão de analisar o corpo nu do solicitador colocado sobre aquela
laje fria, sua conhecida de tantos outros casos de homicídios por si
acompanhados e investigados, e junto com o Dr. Evaristo, emérito perito
médico-legal e director do sector, observaram não
apresentar qualquer outro sinal de ferida ou contusão. O
solicitador, bem conhecido na cidade, tinha escritório na Rua João de Ruão há
mais de 30 anos, uma carteira de clientes apreciável e partilhava o seu
trabalho com dois colaboradores recém formados. O Inspector
M deslocou-se ao escritório e pode dialogar com os dois. O
Dr. Joaquim Gonçalves, jovem dos seus 25 anos, moreno, 1,70m de altura, boa
apresentação, nascera em Fornos de Algodres. Filho de uma família de modestos
recursos, entre os estudos no secundário ajudava o pai como magarefe no
negócio instalado na sua aldeia de Muxagata, tratando, assim, de criar
condições para mais tarde abraçar o curso de direito em Coimbra, e neste caso
na actividade de solicitador. Encontrava-se à meia
dúzia de meses a ajudar o doutor Santiago no seu escritório. –
Pois, Senhor Inspector, soubemos do ocorrido esta
manhã ao doutor o que nos deixou, a mim e ao meu colega, como deve imaginar,
profundamente consternados e desorientados. Mas antes de continuarmos, posso
oferecer-lhe um café…? M
aceitou de bom grado porquanto não tinha tido ainda tempo de retemperar as
forças desde que fora chamado a intervir logo muito cedo na manhã. O jovem em
passo inseguro e bamboleante dirigiu-se para a máquina do café arrumada em
cima de uma mesinha de fórmica, e em pouco tempo retirou duas chávenas de um
líquido negro e aromático de que ambos se serviram. –
Estávamos a par, eu e o meu colega, Dr. Robalo Cordeiro, da viagem de hoje do
doutor Santiago a Lisboa e qual o seu objectivo, de
um enorme interesse para o cliente e bem assim para este escritório, mas
agora não vejo como se pode concretizar o negócio com o desaparecimento da
pasta onde os papéis seguiam… –
Doutor Gonçalves… Onde passou esta última noite?, aflorou o Inspector M. –
Olhe Inspector… Andei por aí com uma amiga da
faculdade. Fomos até ao Queimódromo, no
Choupalinho, onde vimos duas bandas a tocar umas rocalhadas.
Por cerca das 2h30, fui levar a minha amiga a casa e depois segui, sempre a
pé, até ao quarto onde vivo para os lados da Sé Velha. Às 9h30, como é
normal, dirigi-me aqui para o escritório quando o “Jorge dos Pensos”, um moço
dono de uma banca ambulante instalada à nossa porta de entrada, me transmitiu
a notícia… “O Dr. já sabe o que aconteceu? Apareceu morto o doutor Santiago
na Estação Nova…!” Perante essa informação imaginei de imediato que vocês, da
Judiciária, tivessem metido mãos nesta estaria, por isso liguei de manhã para
a Directório tentar falar com alguém sobre o caso,
a procurar saber do que se passara, mas não havia ninguém do sector… A
telefonista disse-me ter o assunto transitado realmente para os homicídios,
daí presumir ter sido o doutor assassinado… Pode o Senhor Inspector
pôr-me a par, agora, do que realmente aconteceu… M
transmitiu-lhe sucintamente o ocorrido e de seguida falou com o Dr. Robalo
Cordeiro, o outro estagiário, que, por afazeres pessoais só pudera chegar ao
escritório a essa hora, seriam 15h15. Tratava-se de indivíduo de forte
compleição, natural do Sabugal, raiano, portanto, 1,80m, 26 anos, cabelo
alourado, praticante de artes marciais e pessoa com expressão decidida e
firme. Com alguma agressividade na sua voz e postura enfrentou a pergunta do
investigador com duas “pedras na mão”… –
Que quer o Senhor saber de mim…? (respondeu). Eu não sei nada do doutor
Santiago para além do que o meu colega já lhe deve ter dito… vociferou.
Deitei-me tarde por causa da Queima, fui tratar de uns assuntos nas Finanças
e ali ouvi comentar sobre o aparecimento do cadáver do nosso patrono, o
doutor Santiago… Mais não lhe posso dizer… – concluiu agastado. –
Calma Dr., calma!, dizia o Inspector naquele seu
tom entre o paciente e o inflexível. Quero que entenda o nosso trabalho.
Perante um caso destes todos temos de compreender, seja eu ou outro colega a
encetar as investigações, ter a Judiciária de fazer perguntas, recolher
informações, inquietar espíritos… Isso é da norma ou o Dr. não sabe disso? Bom…
Deixemos os investigadores seguirem o seu trabalho com o sigilo que ele
merece na certeza de estar o assunto entregue a profissionais competentes e
tracemos nós mesmos algumas ilações sobre o que acabámos de ver exposto. |
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© DANIEL FALCÃO |
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