Autor

Luís Pessoa

 

Data

5 de Julho de 1992

 

Secção

Policiário [5]

 

Publicação

Público

 

 

O INSPECTOR FIDALGO E O ECLIPSE

Luís Pessoa

 

Dom Teodósio morreu naquele dia. Chefe de uma família altamente conservadora e católica, tinha instruído em vida que, ao morrer, queria toda a sua família reunida num velório de três dias e três noites, sem que qualquer dos familiares se pudesse ausentar da área da capela da quinta onde morava.

A tarefa era difícil. Três dias e três noites não são tarefa simples e, muito menos, agradável. Mas era preciso, que aos desejos de um morto não se pode faltar. E, assim, mais de uma dezena de familiares, próximos e afastados, por ali andavam, dentro das paredes de granito, sem qualquer elo com o mundo exterior, que janelas, portas ou simples postigos eram coisas desconhecidas naquela construção sóbria e pesada.

A entrada era feita por um sólido bloco de granito amovível, que dava passagem a outra sala, consideravelmente menor, de onde, por um estreito e comprido corredor se atingia, finalmente, a luz do dia e o ar puro.

Decorria o terceiro e último dia deste ambiente sórdido e todos se mantinham nos seus postos, com mais ou menos sacrifício, dormitando pelos cantos ou ressonando a bom ressonar até uma mão carinhosa os abanar, evitando o escândalo. Tudo estava parado no tempo e nem se imaginava que um fenómeno estranho estava a ocorrer lá fora – um imprevisto e não anunciado eclipse, que pôs toda a região às escuras em pleno dia, fazendo com que os mais antigos falassem de maldição pela morte do fidalgo…

Lá dentro, nada chegava desses ecos e a vida decorria sem desenvolvimentos. Três personagens dominavam a cena: o filho do fidalgo e dois sobrinhos deste, que odiavam profundamente o primo, sobretudo pelos milhões que ele ia herdar. Não surpreendeu, portanto, que, no compartimento ao lado, tivesse aparecido o corpo do herdeiro, assassinado a golpes de punhal quando ia ou vinha da casa de banho, situada à entrada do corredor que dava acesso ao exterior.

O inspector Fidalgo nem queria acreditar que, numa família daquelas, houvesse casos assim, mas a realidade estava ali, nua e crua.

Numa selecção feita minuciosamente, apenas os dois sobrinhos do fidalgo apareciam como suspeitos do crime e urgia ouvi-los em declarações:

Ambrósio: “Gostaria de o ajudar, mas nada sei sobre o assassínio do meu primo. Não saí da sala durante todo o dia, excepto para as minhas necessidades, mas sempre fui sozinho e não me cruzei sequer com o meu primo… Claro que já vi punhais como aquele, eu mesmo uso um, mas não vinha para uma cerimónia destas com um punhal, não acha?... Não sei se alguém pode testemunhar que eu não saí da sala na altura em que saiu o meu primo, sinceramente não sei… Sim, detestava-o, mas não era capaz de o matar…”

Elias: “Não tive nada a ver com isso… Eu? Matar o meu primo por causa de uns milhões? Não, não ia arriscar passar a minha vida na prisão por dinheiro… Mas ainda bem que alguém o fez, porque, assim, sem esforço, vou herdar uns milhões, mais o meu irmão, claro está!?... Nunca vi tal punhal e não uso nada disso… Sim, ausentei-me durante uma hora ou mais, mas só porque não aguentava este ambiente estúpido e fui mesmo até à rua, apanhar um bocado de frescura e apreciar os campos à luz deste luar brilhante que acho que só há por aqui…

O sorriso do inspector não deixava mentir… Já tinha as ideias arrumadas:

 

A – O criminoso foi o Ambrósio porque usava um punhal igual ao do crime; se calhar foi mesmo.

B – Foi o Elias que cometeu o crime porque disse ter vindo à rua observar os campos à luz do luar, quando não havia luar.

C – Foi o Elias porque andava obcecado por dinheiro, como confessou, e ficou agradecido a quem assassinou o primo, numa forma de despistar.

D – Foi o Ambrósio que teve o cuidado de não falar de dinheiro para não se denunciar, mas confessou que o detestava.

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO