Autor

Manuel Constantino

 

Data

6 de Dezembro de 1991

 

Secção

O Detective - Zona A-Team [141]

 

Competição

Torneio dos Mestres

Problema nº 3

 

Publicação

Jornal de Almada

 

 

O MISTÉRIO DO BODE ASSASSINADO

Manuel Constantino

 

Sol ao encontro do horizonte poente.

No campo, ali no Rossio beijado pelo Tejo, a azáfama do último dia de vindima.

A colheita dos últimos cachos.

O rancho.

Risos, dichotes com graças e malícia.

Ó melhere, alevanta-me esse cesto, trás p’raí impinada!

S’a desses aqui uma mão1 Estes homes de merda só servem p’ró beber, mas na prestam p'ró fazer!

Gargalhadas.

Mais dichotes.

De longe, soprado pelo vento brando a cheirar a uva esmagada… uma voz cristalina:

«À entrada de Almeirim

Está um portão encarnado

Onde mora a minha sogra

A mãe do meu namorado.»

A Rita Melão, sempre lesta, vai à deixa. Endireitou-se e provocantemente abriu a goela para a réplica:

«Roubaste o meu amor

Vizinha de ao pé da porta…»

Carrancudo e indiferente ao desafio, o Zé da Casimira, capataz afinado, interrompeu insistente:

Deixa lá isso cachopa, faltam meia dúzia de cêpas e vamos à adiafa. Anda! Anda!

O diacho do home não me larga. Ca mal fiz eu a Deus p’ra t’aturar? Tá cum dor de corno p’la certa!

Zé da Casimira não se deu por achado, se bem que babadinho pela rapariga. A Rita eram os seus olhos…

Pretendentes não faltavam: o Miguel e o Chico Pequeno olharam de soslaio.

A rapariga dava conversa aos três, sem se decidir por um.

Colheu-se a última videira.

Levantaram-se os encerados e lavaram-se os cestos.

A caminho da vila. Uma carroça levava os últimos cachos a despejar no lagar. A galera transportava o rancho, apertadinhos, roendo uma côdea sobrada do almoço, uma lasca de bacalhau seco… lengalenga de conversa, piadas oportunas, um esganiçado de voz ocasional…

«Ó parreira dá-me um cacho

Ó cacho dá-me um baguinho,

Ó amor dá-me os teus olhos

Para ajuda do caminho.»

E foi precisamente à chegada que surgiu o anormal.

Saltaram da galera. Fizeram roda. O Altinho iria buscar a gaita de beiços, talvez o Gil aparecesse com o harmónio…

Vindo do curral ao fundo, atravessando em corrida o largo páteo cimentado, o bode do patrão Manuel aproximou-se, olhos em fogo, atraído pela saia vermelha, rodada, da Rita… antes que os seus três deuses protectores tivessem tempo de dar um ai, ferrou uma soberba marrada nas nádegas da cachopa. Uma cabeçada e peras… a rapariga quase voou e foi cair nos braços do Zé da Casimira…

O bode pisgou-se, meteu-se pela porta do curral e foi juntar-se às cabras…

Olharam uns para os outros. A Rita empurrou o capataz que não se fazia rogado em conservá-la nos braços e acabou por sorrir tolo.

Gargalhadas.

Ninguém se magoou verdadeiramente, ninguém excepto o Miguel e o Chico que, raivosos e enciumados, juraram vingar-se do bode.

«Dou cabo daquele marmanjo» – pensava um.

«Parto-te os cornos e amando-te p’ró galheiro…» – pensava o outro.

Que terá pensado o Zé da Casimira?

A festa organizou-se, enfim.

Pares encostadinhos e ternos nas valsas; soltos, no fandango, no vira, no bailarico.

Da barafunda e confusão do baile, à sucapa, um vulto saiu cabisbaixo, puxou o barrete para a testa e foi sentar-se numa pedra, longe do barulho.

 

No outro dia o guardador das cabras levantou-se calado, tomou a malga de café com três sopas e foi para o trabalho sem lhe passar pela cabeça a horrível surpresa que o esperava:

…no portão de grades de ferro da entrada de quinta estava espetada a cabeça do bode, cujos cornos quebrados jaziam perto.

– Olha… olha… querem lá ver qu’é mêmo o mê bode? Quem taria matado o alimal e p’ra quê?!

Correu pelo páteo fora a gritar. Não encontrou viva alma… Lembrou-se depois que o «patrão Manuel» t’ava para Santarém.

Aparvalhado, incrédulo, o rapaz correu a chamar o sargento Ambrósio da GNR. Este, depois de o ouvir atentamente, pegou na bicicleta e com o rapaz escarranchado na traseira dirigiu-se às Milheiras, à Quinta.

Tudo sereno. Como de costume, depois da vindima, havia como que um interregno de fainas agrícolas.

O sargento tirou a cabeça do bode, varada de um lado ao outro por um tiro, provavelmente de pistola ou revólver de grosso calibre. No páteo, e do curral ao portão, um largo rasto de sangue – que denunciava o arrastamento do animal – mostrando pégadas, visíveis umas, incaracterísticas outras, mas todas das mesmas dimensões.

Não encontrou nem a bala nem cápsula, quer no curral, quer no páteo. Tudo levava a crer, porém, que o bode fora morto junto da porta do curral, onde se encontrava uma pequena poça de sangue meio coagulada.

O corpo do bode desaparecera igualmente.

As andanças do sargento, se bem que aquela hora da manhã pouco movimento houvesse nas vizinhanças, breve despertaram a curiosidade. Daí ficou a saber da disputa amorosa quanto à Rita e da cena ocorrida com o bode, confirmada, aliás, pelo próprio guardador.

Procurou de imediato o Miguel e o Chico. O primeiro acompanhara o patrão a Santarém; o Chico, vermelho e trémulo, logo acusou o capataz – o Zé da Casimira.

Foi o Zé, na tanha dúvidas mê sargento. Candê aqui passei no mê burrito p’ra ir ao oleiro, vi o home a arrastar o qui m’a pareceu um saco de batatas… agora vejo q’era o diacho do bode…

Sem se deixar levar pelas aparências, guiado pelo guardador, Ambrósio foi ao cubículo onde habitava o capataz, nos fundos do páteo. Remexeu por aqui e por ali e encontrou as botas novas do Zé de Casimira debaixo da enxerga. Espantado, notou manchas de sangue nas solas de borracha. Tinha o homem por sério e esta descoberta era contra a sua convicção. «Nunca se conhece um homem!» – pensou.

Em todo o caso, sabendo que ele estava a trabalhar numa fazenda próxima, fechou o portão da quinta, disse ao guardador das cabras que não deixasse entrar quem quer que tosse e, montando de novo na bicicleta, for ter com o capataz.

Encontrou-o a espalhar um pouco de adubo fertilizante de cobertura, sobre um pasto temporão.

Apertado, face às acusações verbais do rival e prova material das botas ensanguentadas, que o sargento levara, o homem mostrou-se surpreendido, irritado, mas firme.

Sôr Ambrósio, p’ra q’havia eu de matar o alimal, na me diz? Q’ais saca, q’ais bode… dêxa q’u tal Chico amanhim na tá cum modos d’aparecer… Augenta cá cum murro nos cornos… na intendo…

Apesar dos seus protestos, o sargento trouxe o homem consigo. Passou entretanto pelo oleiro onde confirmou que o Chico ali estivera para comprar um grande pote de barro, logo na hora da abertura. Foi também à botica onde comprou algum material… Apostava em si próprio, ia tentar fazer um teste de parafina-difenilamina, conforme vinha nos livros…

…Curiosamente o teste deu positivo – as mãos do capataz, submetidas à experiência, denunciaram as famosas manchas de tom azul escuro reveladoras!

Mas como conseguira arranjar a arma?

Deixou o Zé na cadeia, foi procurar o Chico e fechou-o em cela diferente, mas frente a frente… talvez «piassem»!

Voltou ao quintal e resolveu tudo, bem como os terrenos circundantes; não encontrou nem arma nem corpo de bode.

Telefonou para o Posto para saber novidades: «insultos mútuos, por enquanto» – foi a resposta.

Foi buscar um banco e sentou-se pensativo ao portão a aguardar a chegada do patrão Manuel.

Lá pelas duas da tarde chegou a charrete.

Enquanto o Miguel foi desengatar o cavalo, o sargento respondeu ao «há novidade?» do patrão Manuel.

– Há. Há, sim Manuel. Uma ruim e outra boa, A ruim, assassinaram o bode! A boa tenho o matador debaixo de tecto próprio – vou mandar soltar o inocente.

No silêncio deixado pelo espanto do patrão, passou, em marcha cadenciada, a carroça do Jão Pacheco, um velhote, de jaqueta ao ombro, levava pela trela um cachorrito, logo atrás, de cestos de vindima à cabeça, brejeiras e provocantes. duas moças cantavam a meia voz:

«Cá o melão de Almeirim

É tão doce corno o mel

Mas é como o meu amor

Que ao pé da casta tem fel…»

 

DESAFIO:

1) Quem matou o bode?

2) Desenvolva, fundamentadamente, o seu raciocínio.

3) Encerre, género pequeno conto, o desenrolar da acção.

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO