Autor Data Janeiro de 1978 Secção Enigma Policiário [22] Competição I
Grande Torneio de Divulgação 7º Problema Publicação Passatempo [44] |
AMORAS E PÃO Mário Campino O cavalo
entrou em galope cadenciado, pelo atalho, no restolho do trigo. Uma perdiz
solitária, apressada, atravessou o carreiro, ergueu-se em voo rasante, para
poisar fora da vista. A direita o
olival. O «Olival do Caroça». A esquerda, meia dúzia de pinheiros raquíticos. Avô
«Palaló» – um homem de estatura média, largo de
corpo, rosto curtido e inteligente – semicerrou os olhos, olhando ao longe
contra o sol. Aconchegou o cajado de junco entre a sela e a perna. Apertou os
joelhos ao peito do pigarço. O animal espirrou abanando a cabeça e meteu a
passo. Subitamente relinchou, dando um salto para o lado. O homem aguentou a
guinada brusca, o cajado apareceu na sua mão descendo como um raio em
vertical à terra, esmagando a cabeça da ziguezagueante cobra origem do
incidente, ao mesmo tempo que aquietava o animal. Deixou que a ponta do pau,
reforçada a ferragem, deslizasse pelo chão seco, limpando-o antes de o
colocar no lugar inicial. O rosto nado
mostrou qualquer emoção. Atravessando
um pousio curto, tomou o caminho areento das carroças, ladeado pelo silvado
dos valados, de grossas e negras amoras. Quando atingiu
o aglomerado de figueiras onde os porcos procuravam os frutos caídos, ouviu
os gritos da mulher que perseguia o miúdo. – Anda ca mé malandro! Vou fazer-te em fanicos… – Deixe m’lher! Raios a partam… – T’a ceguem a
ti, velhaco. – Alto aí,
pessoal! – interrompeu o avô – Que se passa? – O fedelho
roubou-me o farnel, patrão; comeu-me o rico chouriço! Meia quarta! Eu qu’a semana inteira comi petingas… De cima do
cavalo, o homem olhou o rapaz: doze anos franzinos, (no máximo!) cara
esperta, pálida, lábios descorados, roupa remendada, pobre e asseado, mãos
muito brancas e limpas de dedos habilidosos e longos, gesticulando, tentava
explicar: – Mêmo agora, comi pão com amoras… só pão e amoras… veja, veja… – e
apontava o silvado. – Calma,
calma! vamos lá, – atalhou o avô – tens estado
doente rapaz? Essa cara… Ante a
resposta afirmativa, voltou-se para a queixosa: – Onde tinhas
o diabo do petisco, Maria? A mulher
apontou para a pequena nogueira ao lado do poço, enquanto o cavaleiro
amarrando o cavalo a um pé de videira, se deslocava ao local indicado. Entretanto, o
guarda rural aproximou-se indagando do sucedido. – Parece que
fizeram uma partida aqui à cachopa! E explicou. – Gaita,
gaita! Chouriço, anh? – riu
o homem. O avô parou e
perguntou-lhe: – Olha lá, por onde tens andado, Eziquel? – Não me diga
que pensa que gamei o embrulho! – Tu não, mas
talvez esse canzarrão que te acompanha. O guarda olhou
para o cão, em dívida, e encolheu os ombros. Dirigiram-se os três para o poço.
O moço afastou-se para o lado dos porcos. O avô, procurando rastos
inexistentes no chão duro à volta da nogueira, pegou no pequeno galho partido
onde estivera pendurado o farnel e olhou em volta. Não tardou a encontrar
o saco azul, intacto… mas vazio. – Bem me
parece que foi mesmo o miúdo. Hoje tens de passar sem almoço… Olha, não. Vai
lá ao cavalo e tira do alforge o meu. Voltou, porém,
para junto do cavalo e ele mesmo passou o pão, toucinho e um bom pedaço de
chouriço à muler. Depois gritou para o pequeno
porqueiro: – Olha rapaz!
Diz a teus pais que vão lá a casa contigo. Gostava de falar com eles… O miúdo fez
que não ouviu. Disfarçadamente atirou com um torrão a um porco mais distante.
Trinta e
tantos anos se passaram. O avô, era meu avô. Não
gostava que lhe chamassem «Palaló». Sem motivo,
aliás. A alcunha, como um dia contarei, tinha muito com a sua gigante luta
para se tornar no homem destemido, honrado, trabalhador, muito respeitado,
que foi. De seu nome completo M. B. A., sublinhava-o orgulhosamente. Bom
homem. Bom avô. Lembro-o com um misto de nostalgia, admiração e veneração. O pequeno
porqueiro é hoje um homem pobre. Encontramo-nos frequentemente e fala-me do
«chouriço da Maria». Não se esquece como o avô descobriu que não fora o cão,
mas ele, quem o comera. E vós, amigos?
São capazes de justificarem as afirmações do avô? |
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© DANIEL FALCÃO |
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