Autor

Mário Campino

 

Data

Fevereiro de 1979

 

Secção

Enigma Policiário [35]

 

Competição

Taça de Portugal em Problemas Policiários e Torneio Paralelo

1º Problema

 

Publicação

Passatempo [57]

 

 

Solução de:

NÃO HAVIA MISTÉRIO

Mário Campino

Solução apresentada por Insp. Moisés

Sorriu. Não havia mistério. Comentou entre dentes: – Quem disse «não te fies nas aparências»? Sim, aparências?… Não longe, um pássaro cantava o eterno hino ao trabalho e à vida…

Avô Palaló «revê» Manuel Hortelão, ali bem perto, cavando fundo a terra negra, pequeno e nervoso, empregado de confiança, símbolo do próprio trabalho, começando a lide pelas sete da manhã, com o trato do gado. Aguardente era o seu viciozinho secreto. À Zéfa «p’raceu-lhe» vê-lo atravessar o páteo (em direcção à adega, como é óbvio…) – inda tinha a camisa dos domingos… As aparências eram todas contra ele, pobre Manel!… O pássaro volta a fazer-se ouvir – agora mais perto… Avô Palaló «recorda» a seguir os compadres: Venâncio, bonacheirão, de «grandes mãos, alambazado peito, pernas compridas» – em nítido contraste com o Casimiro, «pequeno e seco», aprumado, bom «garfo», «melhor copo»… Olhou em frente, para a entrada da casa, onde, a espassos, via passar o vulto da Zéfa tratando do almoço… O Sol, subindo no horizonte, ia aquecendo a terra com os seus raios criadores. Avô Palaló sentia renascer em si aquele gosto pela vida que tanta força lhe dava e surpreendia aqueles que não o conheciam bem…

A Zéfa estava fora de causa – sem a menor dúvida! Não precisava de desviar a garrafa para nada. Tinha acesso à adega (a um sinal, foi buscar o «cangirão»), podia servir-se à vontade na própria cozinha – e nem sequer lhe é conhecido o gosto pela bebida… O Manel, por sua vez, se fosse ele o autor da proeza, teria a camisa suja de sangue que não deixara de correr e, sobretudo, teria deixado esse rasto, ao atravessar o pátio – o que não acontecia. O sangue só era visível desde a horta até à estrebaria e a camisa estava lá no quarto, arrumadinha… O pássaro canta de novo, mais perto ainda…

Sim, não havia mistério. Ou melhor: mistério havia, mas era o da natureza humana, que aos humanos tanto escapa… Que levava um homem, no final da vida, bem colocado na vida, de visita a um amigo, recebido por este fidalgamente, a vestir camisa alheia, para se fazer passar por outrém, no intuito de lhe roubar uma simples garrafa de aguardente que, possivelmente, até lhe seria oferecida, se a tivesse pedido? Como explicar tal fraqueza?…

Era evidente que esse homem não podia ser Venâncio – a sua compleição física em nada se assemelhava à do Manel, contrariamente ao que sucedia com o major reformado… Mas… teria o compadre Casimiro desviado a garrafa com o propósito deliberado de a levar mesmo, às escondidas, com a ideia fixa de a roubar, portanto?… Esta a interrogação que Avô Palaló fazia a si próprio, recusando-se a acreditar, agora, em todas as novas aparências…

O pássaro ali estava, agora já na horta, com o seu hino melodioso e alegre…

Ao avô Palaló não era difícil imaginar o visitante esperando pela saída de todos, entrando no quarto do Manel, procurando a camisa, vestindo-a (ou mesmo vestindo uma sua, igual) atravessando o pátio rapidamente, entrando na adega, trazendo a garrafa escondida, regressando aos seus aposentos, metendo a garrafa na própria mala, voltando ao quarto do pobre trabalhador para lá deixar de novo a sua camisa. De todo o mistério, portanto, ele sabia o que, quando, quem e como… Mas – porquê? Sim, porquê?!… Que fazer, quando regressassem os dois compadres, vindos de Coruche?… O pássaro voou, passou mesmo junto a si e foi pousar no beiral da casa. Mais uma vez fez ouvir a sua voz melodiosa, alegre, feliz…

© DANIEL FALCÃO