Autor Data Dezembro de 1978 Secção Enigma Policiário [33] Competição Taça
de Portugal em Problemas Policiários e Torneio Paralelo 3º Problema Publicação Passatempo [55] |
ASSADO ESTURRADO Mário Campino Desmontou.
Um tanto trôpego pelos movimentos incertos do cavalo, o avô Palaló conduziu o animal a beber. Lavou as mãos ásperas
na pia da besta. Aprumou o tronco atarracado, olhando o largo pátio cimentado
onde o fraco sol outonal se reflectia no horizonte.
Tirou a sela e o cabeção, colocou-os sobre o fardo de palha à porta da
cavalariça, para onde o cavalo se esgueirou lesto. Encaminhou-se
vagarosamente para casa. Do casarão chegavam-lhe vozes, o agradável cheiro a
comida, batidas das colheres no fundo da grande malga. Ali o almoço começava
cedo, pois cedo se iniciava o trabalho. Espreitou
ao passar. Manel Hortelão, Zé Pipo, Miguel das Vacas, um rapazote de voz afeminada – o Geraldinho – os dois ganhões
ocasionais – Toino da Rosa, um
latagão tão gago como valente, e o Mesquita
«Espanhol», que atravessara a fronteira ia para seis semanas, fugindo a
um caso de amor mal sucedido, dizia-se. Entretidos com o almoço, não foi
notado. A meia dúzia de passos, ouvia: – Atão na paras, home? – Ná, inda n’acabei! – S’ atrabalhasses assim… Sorriu. Zéfa
viu-o entrar e veio a correr, solícita, limpando as mãos ao avental. Arrumou
o chapéu de aba larga, a samarra pesada, o pau de junco ferrado. Calmamente o
avô pediu-lhe, cortês, que lhe enchesse a banheira, lhe levasse para casa de
banho roupa lavada, as calças pretas e estreitas de dobra branca, a camisa
alva de abotoadura de oiro no colarinho, a jaleca de almares. Depois
do almoço, mandaria aparelhar a parelha das «ruças» à caleche e iria com o
Maximiano até à Golegã… Nunca
faltava à Feira de S. Martinho. Apreciava, como bom ribatejano, o desfile dos
melhores cavalos da região, as demonstrações da arte de bem montar, os jogos
de cabrestos, a exposição de alfaias agrícolas. A
partir da vila, Gouxaria, Alpiarça, Chamusca, Vale
de Cavalos, havia paragens ocasionais para abraçar amigos, trocar breves
opiniões, ultimar negócios pendentes, fora do ambiente formal e entre
galhofa. Um dia em cheio – pensava – vinho, sol, toiros, cachaporrada… Ensaboou
a cara, relembrando as «voltas» que dera pela manhã. Marcou, mentalmente, a
poda na «Azeitada», talvez um pouco de aveia para a baixa do «Foral Velho»… Abriu
a pequena janela para que o vapor da água da banheira desembaciasse o vidro
do pequeno espelho sobre o lavatório. As
vozes dos trabalhadores, no barracão, chegavam-lhe meio nítidas. – Eh Manel, atão na vás c’ o patrão ó São Martinho? – Ná, hoje não. – S’ agarrássemos um petisco, anh,
pessoal? – Aonde? Avô
Palaló tinha dificuldade em identificar as vozes.
Ia ouvindo enquanto se barbeava descuidado. – Olha lá… tá lá
um… de três meses… filho da «Estrela»… debaixo d’ olho… – Majadero, majadero
– interrompeu uma voz. – Ná, ná, na com… na contas comigo – outra voz. – Tás maluco? Vai p’ro corno que ta fez! A
mesma voz tentadora, rouca e arrastada, insistia: – O patrão vai p’rá Golegã, p’rá pândega… tá mêmo na brasa, assado, filho da «Estrela» e do
«Malhado» c’a cobriu no dia de S. Frutuoso… e s’ a fosse um… – Nim uma coisa nim outra, pára p’raí. – Ah pulha de merda, merecias uma punhada nos cornos! Avô
reconheceu na última voz o Manel.
Ficou satisfeito. Estava, porém, intrigado. Quem seria o candidato a
ratoneiro? Talvez o Miguel, um moço esquisito, dos Foros, que voltara da tropa
há cerca de quatro meses e que ali trabalhava pela primeira vez. E o que é
que aquele safardana queria convencer os outros a
assar? Um cabrito? Um borrego? Um bácoro? Talvez um peru! Tinha ali toda a
espécie de gado… ora, não seria uma vitela? Merecia isto? Merecia? Aquilo só
com uma cachaporrada no lombo!... Mas não, não estava disposto a que lhe
estragassem o dia… Continuou
a barbear-se, pensativo. De
repente, pousou a navalha. Foi buscar dinheiro à cómoda e chamou a Zéfa. Sorria. –
Olha, Zéfa,
vai lá ter com o pessoal. Diz ao Manel
que abata um bom galo para o petisco do pessoal. Dá este dinheiro ao Zé da Pipa e diz-lhe que tem dez
minutos para desaparecer desta casa. Saiu-lhe o assado esturrado; não quero
cá ladrões. Zéfa
olhava-o, assombrada. –
Espera, Zéfa,
depois põe o almoço na mesa e manda engatar as ruças para daqui a meia hora… Era
assim o Avô Palaló. Meu saudoso avô. Avô
Palaló gostava de mistérios. Agradava-lhe pôr a trabalhar
o cérebro privilegiado, arrumando ideias, colocando hipóteses, tirar
conclusões. Deleitava-se num bom mistério, como numa tourada à portuguesa, ou
de um varrer de feira à cachaporrada… Enquanto
se barbeava, calma, metodicamente, ciente de que os elementos ao seu alcance
seriam o bastante para a resolução do enigma, duas perguntas – a que acabaria
por responder – estavam no seu espírito: –
Quem seria o potencial larápio? Sabemo-lo, mas… –
Como o descobriu? Eis,
do mesmo modo, as perguntas que lhe pomos a si, Amigo Leitor. |
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© DANIEL FALCÃO |
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