Autor Data 1 de Abril de 2009 Secção Competição Problema nº 8 Publicação O Almeirinense |
A TRILHA DO MORTO Mário Campino Fim
de ano torvo. Inclemente… Em
meados de Dezembro de um ano da década de 40, duas cheias consumadas, uma
terceira a assomar… Sementeiras perdidas, vinhais adiados… a própria erva,
alimento das manadas, jazia sob as águas estagnadas… A inexorável lei da
lezíria: ora pingue de abundância ora de míngua e agruras. Sol
sem calor; crepúsculos precoces… O Tejo não voltara ao leito natural e a vala
engrossava o caudal, prestes a galgar os combros. Auga, auga, q’anta Deus quer! Com
os rostos estriados de rugas, abertas pêlos sóis
dos estios e geadões invernios, os homens da
borda-d’água cuspiam desdenhosos na água turva, eternos inocentes do legado
fatalismo… E o tempo sem ajudar “a ponta de um corno” – comentam. Refugiam-se
no falso lenitivo de duas goladas de vinhaça… assenta p’raí, home,
q’eu ópois pago… Avô Palaló, de ordinário animoso e sereno, mostrava o
semblante sombrio. Mas a vida tinha de continuar! Na “Azeitada”, o Firmino e
meia dúzia de ganhões, “todo o santo dia metidos na
lama até aos joelhos”, podavam as videiras com rama fora de água, talvez para
manter os homens ocupados! Nas “Milheiras”, o Manel Hortelão não descurava as
culturas hortenses. Lembrou a “Herdade das Ferrarias”, o duro arroteamento do
solo demasiado amplo, demasiado estéril, de fracas colheitas… não se pode
ficar pelo milho amarelo, só pelo apego à terra! Gorada a tentativa da compra
aos Condes seus proprietários – “nunca gostara de tentar filhos em mulher
alheia” – feirara os porcos, reduzira as semeadas, mantendo os arrozais junto
à Ribeira de Muge, já que contraíra compromisso de parceria com os
trabalhadores… impensável lesá-los. Sete dias antes do Natal, combinou com o
“Chico Charneco” sementar a “Courela das Azinheiras”, pouco mais de dois
campos de futebol. O Chico madrugou. Quando o dia clareou, já gradara, no
sentido do comprimento, cruzado à lavra, quase toda a leira. O patrão lançou
a semente, deixou algumas recomendações e montou a cavalo em direcção a Benfica, para ir à “Azeitada”. A faina do
Chico era cobrir a semente. Começou por um dos extremos laterais, com nova
passagem de grade sobre a qual equilibrava o corpo miúdo, a servir de lastro…
Parou a meio, para dar água à mula e “engolir uma bucha”, voltando à
gradagem, desta vez começando do lado oposto ao início, até encontrar a
primeira fase. Deixou a grade e os tirantes onde terminou, mas fora do
terreno, já que iria precisar dela para novo trabalho. Engatou a mula à
carroça na qual carregou alguns cepos para a lareira – pedido da “Ti Zéfa” – e voltou a Almeirim, sem passar pelo Casal. O Casal era a preocupação do Avô Palaló. Consentiu que a Ana “Russa” ali se alojasse com o
“Tó-Zé” e detestava desapossá-los. A “Ruiva” cedo provou o largo amargo da
vida. Um corpo airoso, cabelo rubro, foi “enganada” pelo Quim Faia, que havia
de emigrar, deixando-a. Dava-se a qualquer, por necessidade de pão e carinho
mentido, até que o “Tó-Zé”, rude mas certo, a tirasse da “roda”. Ouvira-a,
enquanto arrumava dois tarecos no Casal, feliz-amarga… Na sei s’as
cante, s’as chore, P’ra aluviar a ‘nha pena… S’eu canto, tudo m’esquece, S’eu choro, tudo m ‘alembra. Lembrai
o diabo… Quim voltou, na véspera do Natal. O mesmo franzino moreno, mas de
fato inteiro às risquinhas. Lenço ao pescoço com laço, óculos de lentes
azuis, boina à banda, “paivante nas ventas”, punha as cachopas de cabeça
doida, com trejeitos de rufia e falas à “estrangêra”.
Procurou Ana; todos se calavam. No dia seguinte ao Natal, rumou à Raposa pela
madrugada. Aí obteve o paradeiro da antiga amante. A
porta do Casal estava aberta e a rapariga, de costas, arrumava um cesto.
Devagar, pôs os óculos sobre uma arca, fechou a porta suavemente e
dirigiu-se-lhe. Pressentindo a presença desusada, ela voltou-se, ruborizada…
Ele estendia os braços… Monamour… monamour!... ciciava, enquanto
ela fugia para a cozinha, gritando-lhe: Suma-te!
Rai’s ta quême… qu ’ele é bum home p ’ra mim!... A
porta do casal foi aberta com estrondo. Quim saiu lesto pelas traseiras,
escondendo-se nos ramos de um salgueiro. Ouviu ralhos, choros e pancadas… Alevo-lhe duas alembranças; uma é ’ma cachaporrada p’rós cornos – era a voz alterada do Tó-Zé. Saiu do
esconderijo e meteu-se pelo carreiro da Ribeira, a caminho dos Paços. Ainda
que tentasse recompor-se, ao Zé Vicente, sentado à porta da “venda”, não
passou despercebida a ansiedade, talvez medo, que lhe ia nos olhos castanhos… –
Viste lobo… ou alevaste
“tampa” da Cachopa? Intão? –
Na é isso, Ti Vicente… Vá, prante ai um
pirolito p ’ra eu boer! –
disparou. Mas preciso duma bicicleta p ’ra ir a Benfica, botar o olhar na ’nha
tia Dores… –
Bricicleta… bricicleta… o Jerolmo enxertador… Saiu
ágil, sem beber e sem pagar, deixando Vicente atónito. O
Jerónimo estava de partida para Almeirim, para a Casa Prudêncio. Acedeu em
emprestar a “pedaleira” e pediu-lhe que, por uns dias, ordenhasse as vacas,
tratasse delas e do burro, possante animal de raça espanhola, preso à
manjedoura. Podia ficar na casa, se quisesse… Pendurou a jaqueta no ombro,
pegou na caixa do ofício e tomou a charrete que o esperava. Tó-Zé procurou o
Quim. Não o encontrou na Raposa, galgou a estrada de areia para os Paços e…
apagou-se-lhe o rasto! Não voltou a casa nesse dia e noite. Ana pensou que
estava zangado ou, porque a noite foi de chuva intensa, estivesse recolhido.
Na tarde do dia seguinte, já angustiada, fechou a porta à chave e procurou o
regedor da Raposa, com um mau pressentimento. Foi através deste que a notícia
chegou aos Paços. Jerónimo,
com a terra ensopada, não podia enxertar. Ia a chegar a casa, quando a voz da
Rosa leiteira lhe chegou aos ouvidos: – na
ma deixaste lête, duas vezes, pirum arrufado…
Não compreendeu logo, mas, quando chegou a casa, viu que as vacas, com comida
à frente, se encostavam à cancela, a mugirem penosamente. O burro, com a
porta do curral aberta, solta, roía os restos das couves da horta…
Entretanto, chegou o Quim, que “gramou a grande tosquia”, enquanto tirava e
punha os grandes óculos azuis, incapaz de responder. Foi quando chegou a
notícia do desaparecimento. Quim ofereceu-se para as buscas e desandou para
as margens da Ribeira, que ladeiam as duas povoações – Paços e Raposa… Só
no quarto dia havia de aparecer o corpo. Um participante nas buscas, a pouco
mais de 200 metros do Casal, ao lado do caminho de areia, entrou nas giestas
altas, notou um cheiro esquisito e olhando, ocasionalmente, para o campo de
trigo, viu um corpo com as vestes do desaparecido, no centro do terreno.
Gritou pelo regedor, que tomou a iniciativa de mandar chamar a G.N.R., não
consentindo que alguém se aproximasse… o cheiro não pedia socorro! Três horas
depois, o cabo André e um guarda pedalavam para as Ferrarias; Avô Palaló, avisado, montou o lusitano castanho, meteu-se por
atalhos… Chegaram quase em simultâneo: os guardas, suados, de farda cinzenta
e capacete género colonial, às voltas com as “mauseres”;
Avô Palaló, fresco, talvez
com as pernas mais arqueadas. Olhou o cabo indeciso, ouviu o regedor e
convidou-os a irem ver o corpo – era, de facto, Tó-Zé, de costas, braços
abertos, cabeça esmagada! Fora crime, sem dúvida… Olhou
à volta, não viu pegadas nem rastos de transporte ou de luta. Parecia que “o
homem caíra do céu” – comentou com o cabo. Observou o terreno em volta, onde
o trigo a despontar formava um ténue tapete verde. Apenas que naquela última
passagem da grade (que o Chico deixara na orla e lá continuava) o trigo não
nascera, como que assinalando o trilho da morte. Absorto, assistiu ao
transporte do corpo. Não era suficientemente importante para merecer a
presença de um especialista em medicina legal; o Dr. Godinho faria uma
autópsia sumária… Passava
as rédeas sobre a cabeça do cavalo, quando o cabo se aproximou. – Sr. Pa…
perdão… vocemessê
ajuda-me? Trespassou-o com o olhar, viu que o homem estava “completamente às
aranhas”, acenou gravemente com a cabeça num sim e voltou-lhe as costas. No
Casal, conversou demoradamente com Ana “Ruiva”, soube da abordagem e seu
resultado. Ficou com a certeza de que não voltara a ver o ex-amante e que nem
queria voltar a pôr-lhe os olhos em cima. Na Raposa, não encontrou pistas.
Meteu pelo caminho dos Paços, perto da “trilha do morto”. A cerca de 200
metros, à esquerda, havia uma rima de canas que o Daniel Bicho utilizava para
apoiar os bacelos. Daniel não viera à fazenda desde o princípio do mês. O
Brito, quase no fim da jornada, foi mais útil. Vira passar o Tó-Zé para os
Paços, no dia seguinte ao Natal; não o vira regressar. Ao romper da noite, já
chovia (ca noite d’auga, rai’s m’abrasem!), no sentido da Raposa, viu um
grande burro carregado com dois molhos de canas, um de cada lado. A carga
pendia para a esquerda e o homem, com a manta pela cabeça, via-se aflito para
manter o equilíbrio. Não soube quem era. Aqui acabaram-se possíveis rastos do
morto – se é que eram rastos! Jerónimo contou a sua história. O Vicente,
sempre em dia com as novidades, escudou-se na falta de memória. Ninguém
“enxergara” a vítima, nos Paços. Era noite e tomou o caminho de casa, já que
Almeirim era um dos vértices do rectângulo
irregular; Paços, Raposa e Benfica os outros. No último dia do ano, recebeu a
visita do cabo André. O Dr. Godinho tinha feito o serviço: a morte dera-se
entre três a cinco dias antes, provavelmente, no dia em que saiu de casa.
Recebera uma pedrada na cara, mas a morte resultou de duas pancadas
violentas, talvez com um pau. O sangue acumulado indicava que o cadáver
esteve deitado sobre o lado direito, durante algumas horas. Agradado pela
humildade do cabo, Avô Palaló abriu-se num dos seus escassos sorrisos: –
Sabe, cabo André, reuni indícios, dei-lhe um corpo que parece sólido… Tenho
uma teoria, que lhe ofereço com satisfação, de quem matou aquele desgraçado e
como o seu cadáver foi parar à minha seara, sem deixar rastos… Notas:
Milheiras e Azeitada – Casais próximos; Ferrarias – Herdade próxima; Benfica
(do Ribatejo), Paços (Negros) e Raposa – localidades próximas. É
tempo de os leitores competirem com o Avô Palaló,
elaborando os seus relatórios e descrevendo como entendem que o crime terá
acontecido. |
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© DANIEL FALCÃO |
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