Autor

Mário Campino

 

Data

6 de Novembro de 2016

 

Secção

Policiário [1318]

 

Competição

Campeonato Nacional e Taça de Portugal – 2016

Prova nº 10 (Parte I)

 

Publicação

Público

 

 

COMO NA LENDA DE PILARZITO

Mário Campino

 

Depois das cheias que afogaram as veigas ribeirinhas, o Tejo retomou o leito. As planuras, terras alagadiças, enxugavam. Com os alvores da Primavera, os homens procuram terras altas, no empenho das searas temporãs. Avô Palaló, na “Herdade das Ferrarias”, notou a inesperada borrasca e adiou a partida para Almeirim. Ceou com o “Charneco” e o “Chico Figueiredo”, dormiu no casal. A noite foi alagada pela chuva birrenta de lavar a terra e entranhar. De manhã o céu estava limpo e azul. Sem pressa, rumou a casa. O cavalo seguia a passo, sem comando. Passaram pelo bebedoiro de pedra, na berma da estrada, onde a água límpida vertia da encosta por um cano improvisado, para a pia, e desta para a valeta. Continuaram por uma subida breve, cheia de curvas, ladeada por eucaliptos. A estrada ficou plana e o cavalo deu um ligeiro trote até chegar às ruínas do Convento da Serra. Desta restava uma meia parede do pórtico em ogiva; o decurso dos séculos e a incúria dos homens encarregaram-se da destruição. Construído em homenagem à Senhora da Natividade em terras da coroa, hoje pertença de D. Luís Margaride, gozara de privilégios reais, continuados por D. Manuel I e D. João, o príncipe herdeiro. A mente do caminhante – o Avô Palaló – recordava. Conta-se que, cerca da primeira quinzena do ano de 1.500, receando a peste que alastrava em Lisboa, a corte tomara poiso nos Paços de Almeirim. Com ela toda a intriga própria, ante um rei gasto e enciumado em relação ao príncipe D. João e à nova e bela 3ª esposa, D. Leonor, com quem casara, ainda que tivesse prometida ao príncipe. Era então prior-mor do Convento, Frei Tomás de Santa Fé – confessor do príncipe e eventualmente ouvido pelo Rei – que viria a revelar-se um embusteiro. Não desconhecia o frade a paixão do príncipe pela madrasta, e seria correspondido. Enquanto D. João escondia a tristeza nos escuros do Paço, os fiéis amigos d'Ataíde e Luís Silveira procuravam distraí-lo. Levaram-no, mascarado, à “Taverna do Garcia”, onde a filha, Maria do Pilar, bela e doce donzela de quinze anos, alegrava a assistência com danças castelhanas. O príncipe gostou e toda a noite falou com Pilarzita. Logo depois, os dois amigos, de acordo com o príncipe, providenciaram a recuperação de uma pequena casa à beira de um riacho, a meio caminho entre Almeirim e o Convento. Artífices embelezaram e mobilaram luxuosamente o local para onde Pilarzita, apaixonada por D. João, foi levada com uma velha ama e onde o príncipe era assíduo. Terá o idílio chegado aos ouvidos do Rei, pela boca intrigante do frade, alegando sacrilégio.

Pilarzita apareceu afogada no riacho, a ama desapareceu. Frei Tomaz seria apunhalado no caminho para Santarém. São nebulosos os acontecimentos futuros. Sabe-se que o príncipe se tornou El-Rei D. João III – o Piedoso. A casa, cenário da tragédia – hoje conhecida pela “Casa da Pata”, ninguém sabe porquê – ruiu. Durante séculos foi erguida, reconstruída, caiu e surgiu de novo, abrigo e sombra dos viageiros. Há dois anos apareceu na vila uma mulher, cerca de trinta e tais anos, esbelta e bonita, mimosa de pele em contraste com as trigueiras do campo, inteligente bastante para convencer a “Alorna” a regenerar a casa para morada. Diz-se que D. Alda recebe muitas visitas para “ler a sorte nas cartas” e contar a lenda da Pilarzita. Mulher escaldante, terá relações íntimas com homens e poço de ciúme para o mulherio. Entregue a estas memórias, Avô Palaló chegou à “Casa da Pata”. Um grupo rodeava o velho guarda-florestal, falavam e apontavam. Intrigado, saiu da estrada, deixou a montada e juntou-se. Soube que o guarda, na ronda normal, encontrara a habitante, morta, no riacho. Correra à “Tasca do Toicinho”, para dar a notícia e chamar a GNR, ele ia vigiar o corpo que não deveria ser mexido. Pelo diagnóstico popular “aquilo era um crime”. Alguém falou no “Barato-Fino” – amante oficial, vindo de fora, bem-falante, vendedor de porta em porta de peças de fazenda para fatos, baratas e finas, que transportava às costas e impingia principalmente aos casadoiros – por tê-lo visto passar na véspera, talvez – lembrava a “bisarma” da “Zabel do Tó Pedreiro”, roída de ciúmes, talvez o próprio Tó que ajudara a reconstruir a casa e ficara “caído p´ra dama”.

Entretanto chegou o cabo André com um subordinado e o dr. Godinho. Este ao ver o Avô comentou irónico "faltava cá o sabichão". O Avô limitou-se a segui-los. Alda estava caída no riacho, “como na lenda da Pilarzito” – pensou. A cabeça mergulhada de frente na água transparente, não chegava ao fundo, se bem que não tivesse mais que três palmos de fundo, braços caídos para trás, descalça, sapatos ao lado de um carrinho de mão. O médico mandou tirar o corpo para fora, examinou a temperatura, a face congestionada de cor azulada, apalpou os lábios e o nariz macerados e uma escoriação na nuca. Voltou-se para André: – Bem. Morte nas últimas seis horas, não morreu de submersão, pode ter caído e batido nesta pedra de lavar roupa, pancada não bastante para matar, ou… não digo mais sem autópsia. O guarda apontou as unhas compridas das mãos da vítima e disse: a senhora tem uma unha partida recentemente, no anelar, não vejo o fragmento partido, não está aqui.

Avô Palaló, interessado: André, posso ir à casa de banho? E sem esperar resposta, contornou o espaço de areia frente à casa e entrou: era ampla e limpa. Ao fundo, resguardado por uma cortina era o quarto, na parte da frente, onde entrara, a cozinha com um fogão e um cesto com pedaços de madeira; no lado oposto, um sofá, cadeiras e uma mesa redonda com cartas dispostas lado a lado, a carta que representava a “papisa” fora rasgada ao meio e a parte superior atirada sobre elas. No chão um pedaço de madeira e uma almofada onde descobriu cravada um pedaço de unha. Encaminhou-se para a porta e encontrou a parte inferior da carta rasgada, amarrotada. Olhou-a e ficou a ponderar o seu significado. Sorriu levemente e exclamou entre dentes: “Que mulher inteligente e imaginativa! Que incrível sangue frio diante da morte! Divisou André que se aproximava; o médico, em “dia não”, já abalava. – Tens aqui o pedaço de unha que retirei daquela almofada e uma mensagem neste bocado de carta.”

André ficou confuso, o Avô, quase ansioso, esclareceu-o e rematou: – Vamos ver os rastos! Seguiram os rastos, da porta à vítima. Um primeiro, podiam deduzir, era de um pé grande, gravado profundamente na areia lavada pela chuva, mais nos calcanhares, o outro de um pé pequeno marcado nitidamente no início da marcha, depois arrastado parecendo esconder o primeiro, tal como o rasto da roda de um carrinho de mão. Óbvio para ambos. André constatou que o pedaço de unha coincidia com a partida. – Não é a mulher do pedreiro? – disse o Avô apontando uma mulher que, na margem oposta, procurava afastar-se – vamos, quero falar-lhe. Dirigiram-se para a ponte onde já se sabia que o “Barato-Fino” fora surpreendido pela chuva, jantara e dormira na “Pensão do Cabreiro”. O guarda trouxe a mulher por um braço, lamurienta.

– Acalma-te, é só uma pergunta: – Mataste a Alda?

– “Credo home... na abafi a bruxa robadeira dos homes das outras.”

– Então, onde arranjaste esse olho negro?

– O mê home tava com vício da bruxa, a chuva... ê só disse ca foi Deus que amanda a chuva... Alevei uma  tafona... ópois foi dormir c'uma botelha d'augardente pó palheiro do Fandinga...

Avô Palaló voltou-se para o cabo André. - Estamos falados. Vou para casa que é tempo. Agora é contigo e o dr. Godinho. “Aquilo” passa-lhe.

Qual o entendimento do leitor?

Apresente o seu relatório fundamentado.

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO