Autor

Ma(r)ta Hari

 

Data

16 de Outubro de 2017

 

Secção

O Desafio dos Enigmas [34]

 

Competição

Torneio Policiário 2017

Prova nº 8

 

Publicação

Audiência GP Grande Porto

 

 

Solução de:

UM COPO DE LEITE NOTURNO

Ma(r)ta Hari

 

Coitado do guarda Abílio Necas! Ainda hoje deve andar por aí a pensar na resposta que há de dar ao chefe. Mas se pensar um pouco melhor, focando-se mais na interpretação das palavras proferidas pelo seu superior hierárquico do que no caso propriamente dito, que deve ser com certeza fictício, chegará à conclusão que a solução do enigma com que o chefe Machado Faria decidiu testar a sua alegada vocação para a investigação criminal não é nada difícil. O facto de Machado Faria se ter referido à pessoa que dormia com quem matou, afirmando que “ele que se deitara muito mais cedo [do que ela], como era aliás normal acontecer todos os dias”, revela que a autoria do crime é da responsabilidade de uma mulher. E a única mulher que tinha por costume deitar-se muito mais tarde do que o marido era Dália, que “ganhara o hábito de escrevinhar durante a noite, até meio da madrugada, o que se tornara há muito num vício”.

Já quanto à pessoa que encontrou “a vítima deitada numa poça de sangue com uma faca espetada no peito”, se o guarda Abílio Necas atentar nas “obrigações profissionais” que os quatro amigos levaram para aqueles dias de convívio na Serra da Estrela, não deixando de as cumprir “de forma quase religiosa”, verificará que “Carlos passava as primeiras horas de todas as manhãs agarrado ao seu portátil”, de onde se poderá concluir que foi este quem se confrontou com o funesto achado. Admitindo que podia ter sido Berta a primeira pessoa a descer até ao piso inferior da casa, apesar de se saber que ela só tinha obrigações profissionais a cumprir ao fim da manhã, importa recordar que o chefe Machado Faria afirmou que foi “um dos amigos” que descobriu o corpo da vítima. O que quererá dizer que foi um homem a fazê-lo e não uma mulher.

Já se sabe, portanto, quem descobriu o corpo da vítima e quem matou. Falta agora saber quem morreu, para responder cabalmente à questão formulada pelo chefe Machado Faria, sem esquecer que se deve ter em consideração “os elementos conhecidos”. E, assim, conhecendo que se trata de um crime passional (um crime praticado por paixão doentia, quando a pessoa perde o controle de suas ações; um crime cometido por pessoa dominadora e sem o domínio de suas emoções, que mata por ciúme, sentimento de traição ou vingança) e que todos os intervenientes são heterossexuais, sabendo-se igualmente que quem matou foi uma mulher, a vítima é um homem. E esse só pode ser António, que fora o primeiro marido de Dália, cujo casamento se dissolvera seis anos antes, após uma discussão por causa de um copo de leite morno noturno…

António “levantou-se durante a noite, desceu as escadas até ao piso inferior, onde se situa a sala de estar, e deslocou-se à cozinha” para beber um copo de leite morno. Instantes depois, Dália, que sabia deste seu “hábito que ganhara há mais de seis anos”, interrompeu a escrita de mais um romance policial e, talvez estimulada pela história que estava a desenvolver e pela paixão que ainda nutria por ele, foi ao encontro do ex-marido e terá tentado seduzi-lo. Não tendo sido bem-sucedida nesta sua investida, Dália, ao ser rejeitada, terá tido um acesso de fúria que a fez perder a cabeça e desferir-lhe uma facada no peito que lhe tirou a vida. António, apanhado de surpresa com tanta agressividade da sua ex-mulher, não terá tido tempo para nada. Nem para se defender. E muito menos para beber o copo de leite que arrefecia na cozinha. Entretanto, no piso de cima, todos os restantes convivas dormiam e não ouviram os gritos que antecederam o crime.

© DANIEL FALCÃO