| Autor Data 10 de Setembro de 2017 Secção Competição Prova nº 8 Publicação Audiência GP Grande Porto | UM COPO DE LEITE NOTURNO Ma(r)ta Hari O guarda Abílio Necas está
  cada vez mais desencantado com a sua profissão e com o trabalho que realiza.
  Confessa-se muito desanimado e cansado de servir apenas para prender pequenos
  larápios de supermercados, aturar turistas ébrios, admoestar maridos que
  maltratam esposas, perseguir vendedores ambulantes sem licença para a prática
  da sua atividade, proteger velhinhas nos dias em que levantam as suas magras
  pensões e afugentar pessoas sem-abrigo que permanecem pelo dia adentro por
  debaixo das arcadas onde pernoitam. Ser polícia era o seu sonho de criança,
  mas não foi isto que ele ambicionou nas noites passadas em claro a imaginar
  as suas vitórias no combate contra o crime, designadamente nas áreas da
  prevenção e investigação. No fim de mais um dia de
  serviço, em conversa com o seu superior direto, o chefe Machado Faria, Necas
  confidenciou o seu desânimo pelo tipo de trabalho que lhe é destinado e
  manifestou o desejo de concretizar o sonho de menino que acalentou ao longo
  da adolescência, e que ainda conserva, que passaria por executar operações de
  captura de grandes criminosos após recolha de fortes indícios de crimes,
  entretanto confirmados em provas irrefutáveis das práticas dos ilícitos de
  que são objeto de acusação. O chefe Faria, depois de o ouvir repetir até à
  exaustão que está sem qualquer motivação para os serviços que lhe são
  destinados, resolveu pô-lo à prova. – Vamos lá, então, testar a
  sua vocação para a investigação criminal. E devo adiantar que estamos perante
  um crime passional. Tome, por isso, a máxima atenção. – Vamos a isso, chefe. – Dois casais amigos
  resolveram alugar uma casa isolada na Serra da Estrela, em tempos de
  invernia, para passar alguns dias de convívio na neve. António é casado com
  Berta e Carlos é marido de Dália. Mas o curioso é que Berta é a “ex” de Carlos e Dália é a “ex”
  de António. – É muito curioso, na
  verdade. – Curioso é ainda o facto
  de todos eles terem levado consigo obrigações profissionais para cumprir,
  fazendo-o de forma quase religiosa. António reservara os fins de tarde para
  despachar assuntos através do telemóvel. Berta ocupava os fins da manhã com
  troca de e-mails. Carlos passava as primeiras horas
  de todas as manhãs agarrado ao seu portátil. Dália ganhara o hábito de
  escrevinhar durante a noite, até meio da madrugada, o que se tornara há muito
  num vício.  – Há quanto tempo é que
  eles trocaram de parceiros? – Os seus primeiros
  casamentos dissolveram-se há cerca de seis anos, mudando de parceiros cerca
  de cinco meses depois. E eles conhecem-se todos há mais de dez anos, desde
  quando frequentavam a faculdade. – Uma amizade muito antiga,
  portanto… – António e Dália começaram
  a namorar na festa de finalistas e casaram cerca de quatro meses depois.
  Hoje, ele é um muito bem-sucedido advogado e ela transformou-se numa afamada
  escritora de romances policiais. – E os outros dois? – Carlos e Berta
  enamoraram-se logo que se conheceram, no primeiro ano de faculdade, durante a
  praxe de receção aos caloiros. Hoje, ele é um destacado quadro de uma
  instituição bancária e ela assumiu recentemente a direção de comunicação de
  uma importante empresa de relações internacionais, onde trabalha há mais de
  cinco anos. – Até aqui, tudo indica que
  os quatro são mesmo grandes amigos. – A amizade que os unia era
  muito grande, de facto. Mas quando os primeiros casamentos se desfizeram
  houve troca de acusações mútuas sobre a responsabilidade das crises
  desencadeadas e a amizade dos tempos de faculdade acabou por não resistir às
  agressões verbais, situação que se normalizou apenas há meia dúzia de meses.
  E imagine que tudo começou com uma discussão por causa de um copo de leite morno
  noturno. Agora para celebrar a retoma das relações, decidiram reviver um
  género de convívio que repetiam frequentemente no passado. – Bom, mas ó chefe, até
  agora, ainda não vislumbrei o crime passional. – Calma. A vítima
  levantou-se durante a noite, desceu as escadas até ao piso inferior, onde se
  situa a sala de estar, e deslocou-se à cozinha para cumprir um hábito que
  ganhara há mais de seis anos. – E foi nessa altura que se
  deu o crime? – Nem mais. Nas primeiras
  horas da manhã, a vítima foi encontrada por um dos amigos
  deitada numa poça de sangue com uma faca espetada no peito. – Quando quem cometeu o
  crime saiu do seu quarto para assassinar a vítima, a pessoa com quem dormia
  não acordou, não deu por isso? – Não, alegando ele que se
  deitara muito mais cedo, como era aliás normal acontecer todos os dias. – E a pessoa que vivia com
  a vítima também não acordou, quando esta saiu do quarto? – Também não, sublinhando
  até que as saídas do quarto àquela hora era um hábito diário. – Mas ninguém ouviu nada,
  nenhum barulho? – Nos depoimentos à
  polícia, todos os ocupantes da casa declararam não ter problemas de insónias,
  adormecendo mal caem na cama quando se dispõem a dormir. E não me pergunte
  como, mas os colegas da polícia científica confirmaram que todos falavam
  verdade. Ah, é verdade: os nossos colegas que investigaram o crime relevaram
  a existência de um copo com leite que arrefecera em cima do balcão da
  cozinha. – É tudo muito estranho! – E, considerando os elementos
  conhecidos, o que eu quero saber é: quem morreu, quem matou e quem descobriu
  o corpo. | |
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