Autor

Marvel

 

Data

Setembro de 1980

 

Secção

Enigma Policiário [54]

 

Competição

II Volta a Portugal em Problemas Policiais e Torneio de Homenagem a Sete de Espadas

1ª Etapa | Santarém – Lisboa

 

Publicação

Passatempo [76]

 

 

UM CASO SEM PROBLEMAS

Marvel

 

Deixou o olho esquerdo abrir-se-lhe mansamente para conseguir a explicação dos estalidos que destoavam na harmonia da noite estival. A Lua dardejava o auge do seu fulgor sobre o arvoredo que crescia, em feliz disposição, entre as «cabanas» do agrupamento de veraneio, criando figuras bruxuleantes sobre o solo e o passeante. O olho direito despertou também, numa achega à identificação.

– Já de volta? Estou a ver que o whisky acabou depressa.

A atenção do recém-chegado seguiu na peugada da voz chocarreira, depressa localizando a rede oscilante suspensa de dois troncos.

– Esse? Até sobrou. Tal como a sensaboria.

– E daí…

– É isso, vou dormir. Boa noite!

– … noite!…

A rede continuou o seu balancear monótono. Sepúlveda sentiu sede. Aquela alusão ao whisky… whisky. Gelo. Calor. Concordou que tinha muita sede; em contrapartida, escasseava a vontade de providenciar acções debelatórias. Congeminou que seria excelente que a mulher acordasse naquele momento, que pressentisse o que se passava, afastasse de si o ténue lençol que provavelmente a cobria…

E, de súbito, o tiro. Calibre médio. E viera…

A porta abriu-se sem que lhe tocasse. Possuído de convulsões nervosas, o homem não lembrava nada o passeante tranquilo de momentos antes.

– Ele… Matava-me… queira matar-me!…

Sepúlveda galgou a escada, em ângulo recto, que conduzia a um aposento interior, sem mais acessos. Perto dum pesado cofre-forte, que revelava sinais profusos de iminência de estroncamento, jazia um homem. Ao lado uma lanterna de pilhas, ainda acesa.

– Tive de disparar – gemeu o outro, apontando a parede com a mão vacilante. – Veja! Ele matava-me!…

Uma navalha de mola estava cravada a meia altura num artifício de madeira da parede, paralelamente à porta.

– É melhor dar-me «isso».

Pinto Lacerda pareceu só então reparar na automática que conservava na mão. Lesto e com ar de repulsa, estendeu-a a Sepúlveda, que a meteu no bolso; e, logo, iniciou o movimento de se inclinar para o corpo.

– Ele?…

– Morto. – Sepúlveda ergueu-se. – Você conhecia-o?

– Era meu amigo… julgava que era. Lacerda torceu as mãos com força. – Tinha-lhe emprestado a chave da «cabana». Compreende, sou solteiro, e um jeito a um amigo…

Sepúlveda não disse que também ele ocupava uma «cabana» graças a «um jeito de um amigo». Ficou pelo pensamento.

– Vá telefonar à guarda.

O cabo Almeida irradiava benevolência na sua figura não muito elevada, mas bonacheirona. Pareceu abarcar e perceber tudo com um só, amplo embora, olhar demorado.

– Telefonei para o Porto – disse Sepúlveda, com naturalidade. Achei oportuno informar a Judiciária.

Um grande bocado de benevolência deixou bruscamente de enobrecer os sentimentos do cabo Almeida. No entanto, face ao cartão que identificava Sepúlveda como Inspector da corporação aludida, juntou-se ao que sobrava compreensão, deferência, retraimento e desengano. Em partes iguais.

– Ah, sim! O tenente Tomé é que… Mas, afinal, como é que foi? O senhor entrou e

– Abri a porta da rua – explicou Pinto Lacerda – ia acender a luz quando notei uma leve claridade proveniente daqui. Achei estranho…

– Porquê? quis saber o cabo – Tinha emprestado a chave ao homem. Que havia de estranho em que ele cá estivesse?

– Era só um fiapo de claridade, coisa subreptícia… Claro que estranhei. Já não subi sem apanhar a arma que costumo conservar num escaninho oculto da lareira, lá em baixo, no vestíbulo. Vi um vulto às voltas com o cofre. Accionei o interruptor da luz e disse-lhe que estivesse quieto. Pareceu conformado. Largou a lanterna e virou-se, devagar. Depois… ah, foi tão repentino!… Só me lembro de ouvir o silvar da navalha. Disparei. Nem percebo como o fiz uma vez só…

– Que bastou – entendeu dever comentar o cabo.

Sepúlveda passeava, impaciente. Não estava a gostar de muitas coisas para além de não gostar do crime como crime. A sala era pequena e vazia. Que não de prateleiras impantes de literatura. De resto, havia uma pequena mesa com um cinzeiro e uma jarra vazia e dois sofás a ladeá-la. Sob o cadáver, espreitava uma lima fina e outros objectos metálicos, alguns brilhantes. A lanterna apagara-se. Pilhas esgotadas A situação voltou a animar-se com o engrossar do elenco em cena. O dr. Monteiro foi dizendo que sobre a morte não teriam decorrido 2 horas. Ressalvou a tempo que não punha nada no fogo, mãos incluídas, como penhor do que sugeria. Os outros peritos, Gomes e Brito, eram espécimes também interessantes.

Brito mostrava certa obsessão pelo cofre.

– Rico monstro. Parece importado do Forte Knok. Você guarda lá, mesmo, as chapas dos dólares?

– Apenas jóas de família. Têm o seu valor, sem dúvida.

– Estão no seguro?

– Não. Já sei, uma boa estupidez!… Adio sempre para um amanhã que nunca vem… O costume.

– Pode dizer-se que teve sorte. Era questão de mais uns minutos. – E Brito voltou a interessar-se pelo cofre. – Força bruta, nem vislumbre de subtileza. Indecente trabalho de amador. Ia apostar que este tipo – o queixo visou o cadáver, no momento a ser removido – tem o cadastro limpo.

Sepúlveda instruia Gomes, em surdina:

– Trate-me daquilo. – Indicava a lanterna e os objectos metálicos, agora totalmente a descoberto. – Impressões digitais, para já.

– Faz-se aqui mesmo. Quer comparações imediatas?

– Decerto. Olhe, espere.

Lacerda passeava perto a sua inconformidade.

– Podia arranjar-me um copo? – foi o pedido que ouviu – Mas lave-o primeiro. E seque-o bem.

Lacerda foi fazer isso sem entusiasmo visível.

– Está bem seco?

– Se se der ao incómodo de esperar umas horas posso pô-lo a secar ao sol.

– Deixe lá, deve estar bem. Pode pousar aí. E, tenha paciência, arranje-me também uma faca. Dessas vulgares, de cozinha.

Desta vez, Lacerda arranjou um carão furioso. Houve um momento de «suspense», mas a diabrite não detonou. Sepúlveda esperou que ele se afastasse com sonoras passadas para apalpar os bolsos num afã inútil. Uma esferográfica bailou-lhe diante dos olhos, a sossegá-lo.

– Tanto escarcéu para tão pouco – casquinou, radiante, o perito Gomes, enquanto se apoderava do copo com a ajuda da esferográfica. Tinha mesmo de usar o velho truque?

– Isso é comigo. Raspe-se. Trate de que ele não o veja trabalhar. – Gomes agiu com rapidez. No entanto, o seu semblante não demonstrava ter absorvido a sabedoria dos profetas quando apareceu de novo ao inspector.

– Não se vai servir. Há impressões do morto em todas as peças. Por outro lado, a maior, a lima, contém ainda, nítidas, as do Lacerda. Curioso que quase todo o material seja novo, a estrear na missão. Bem dizia o Brito, um amador!…

Sepúlveda ergueu lentamente os ombros, cansado.

– Em suma, um caso sem problemas. Mas confesso, Lacerda, que você quase nos arranjava com aquela história de não ter seguro. Mas teve azar…

 

E, amigo leitor, resta-nos pedir-lhe que exponha os factos que malograram a versão de Pinto Lacerda!

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO