Autor

Marvel

 

Data

Março de 1981

 

Secção

Enigma Policiário [56]

 

Competições

II Volta a Portugal em Problemas Policiais e Torneio de Homenagem a Sete de Espadas

3ª Etapa | Beja – Odemira – Lagos – Portimão – Faro

 

Publicação

Passatempo [78]

 

 

O CALHAMBEQUE DA TIA MIMOSA

Marvel

 

Quero que conste, à partida e em pormenor, que as culpas de quanto aconteceu cabem na íntegra ao (maldito) calhambeque da tia Mimosa e a ela própria.

Tudo começou quando a tia Mimosa, na posse eufórica daquela fortuna há tanto esperada, embasbacou toda a gente ao cruzar o umbral da quinta na direcção de tamanha ofensa às bolsas mal amanhadas.

Quando a vi correr à pedrada um rapazote audacioso que quisera saber se aquela pintura chamejante queimava mesmo convenci-me em definitivo de que ia ter um fim de férias descoroçoante. Isto ainda longe de imaginar que no activo do facto se contaria uma perseguição como gatuno e evadido, uma sova à conta de outro e uma perspectiva de fuzilamento sumário. Tudo com palco não em terras orientais ou africanas mas no solo agreste e bucólico do nosso distrito transmontano. Escuso dizer que nessa noite não sonhei com sereias. Gastei-a a pôr de pé brilhantes estratagemas linguísticos e emocionais que intentariam a convencer a fominha da tia Mimosa a deixar-me pôr as mãos ímpias no volante do calhambeque.

Logo que surgiu a manhã, e como era de esperar, a tia Mimosa e o calhambeque proporcionaram uma exibição magistral a quem a quis ver aproximando-me de atentar contra a densidade demográfica lá do sítio. Claro que aquela lavagem cerebral teria de produzir os seus efeitos. À tarde, aproveitando um descuido, tratei de desamparar a quinta, o calhambeque convertido num foguete. Pensaria depois na fúria da minha parente. Durante um par de horas gozei as delícias da vida. Depois, resolvi começar a preocupar-me. Que a tia Mimosa é mulherzinha que só visto!… Verificar que a gasolina em uso já pertencia à reserva ajudou imenso nesse sentido, sendo que o não saber onde meter quinhentos dela me colocou perto do pânico.

A noite caíra. Avistei luzes, por fim, meia dúzia de casebres toscos. Deixando o carro a certa distância, tropecei na sua direcção.

Acolheu-me um tugúrio onde se vendia vinho e um mar de utilidades. Meia dúzia de rostos prometidos à navalha dominical olharam-me com espanto, respondendo com sons parecidos ao meu «Boa noite» hesitante.

– Eu queria… – Sim, o quê? Falar em gasolina ou telefone, ali, até era capaz de ofendê-los.

O dono da quitanda esfregou as mãos nas nádegas.

– Sem vempor mor da pinga, pois vocemecê está bem.

– E um bocado de presunto. Broa, azeitonas…

– Tem que se lhe diga, pois sim. Depois do segundo copo (14° bem repenicados), a tia Mimosa e o calhambeque foram um bocado às malvas. Em torno doutra mesa, os meus companheiros haviam-se com um sebento baralho de cartas e uma vasilha de vinho descomunal, por onde bebiam rotativamente.

A certa altura, notei que um deles se serviu da vasilha sem previamente me convidar. Tão grave quebra do ritual, solenemente praticado com a minha hipócrita incondicional aderência, metia-me em vestes de anticristo. Realmente, tinham passado a falar em surdina, a lançar-me olhares de través, a citar-me com meneios…

Inquieto, passei a ocupar-me melhor de jogadores e assistentes. A tia Mimosa e o calhambeque continuavam nas malvas. Aqui, ali e mais adiante, amealhei frases, gestos e espiadelas e concluí que determinado facínora se evadira da cadeia e era suspeito de acoitar-se por aquelas bandas. Como já perceberam, os tipos entendiam que eu reunia requisitos que me presumiam sê-lo. Alivado, embora, que previra pior, fui acertar contas com o tendeiro, para ir à vida. Um rapazola anafado girou por ali a saber se o cão estava preso e pareceu satisfeito com a majestática indiferença que mereceu a indagação. Retardei uns minutos a análise visual a umas teias de aranha situadas no tecto e, na ausência de elementos que sugerissem diminuição do estado físico do recém-saído, mergulhei também na noite escura e fria. Um ladrar intempestivo transmitiu-me o frio às entranhas. Breve uma massa peluda e ofegante me embaraçou a marcha, e só sosseguei um bocado quando percebi que me confundia com o tio rico do Brasil. Sossego, sossego, esse só veio quando me cerrei no calhambeque e desembestei dali. Uns quilómetros adiante, tinha feito o balanço da situação. Avançar às cegas era tolice: tentar o regresso à quinta uma forma de suicídio. Portanto, reclinei o assento, agasalhei-me como pude e adormeci ali mesmo. Quando despertei, o frio intensificara-se, caía uma chuva miudinha e a gasolina não dava para accionar um isqueiro. Saí e andei um bocado. Lobos, o foragido, frio e chuva à mistura…

– Você aí! Pare ou disparo!

Voltei-me, devagar, e sangue a esvair-se-me não sei por onde. Um vulto coberto de oleado apontava-me qualquer coisa à escolha entre as más. Presa do terror, tudo me ocorreu menos obedecer. Soaram tiros. Depois, foi uma barafunda tremenda. Às tantas, enquanto experimentava as sensações da laranja no liquefactor, recolhi noções dispersas de diálogo. Cruzavam-se congratulações pela captura do fugitivo: havia surpresa por o estupor, na sua situação, ter ousado cometer o assalto; claro que a estatueta, de puro mármore, fino cinzel, incrustações a ouro… mas daquele peso, quatro e cinco arrobas… pois, ligações, parentela talvez, naquela zona; havia as pegadas suspeitas, e faziam-se apostas, altas e altamente optimistas, em como condiziam com as minhas. Quando os estremeções cessaram, apercebi-me, em doses sucessivas, da realidade. Tinha sido detido por elementos da GNR e viajara num Land Rover da corporação à quintarola isolada donde desaparecera uma autêntica peça de museu.

Para agravar as coisas, as minhas botas coincidiam com as pegadas impressas na terra mole que separava o caminho empedrado da janela por onde, tudo o levava a crer, o gatuno penetrara. Nova série de pegadas, em tudo idêntica e também num só sentido, ia da entrada principal ao mesmo caminho empedrado.

E, como perorou o cabo Salgueiro:

– Já se sabe que temos de identificar formalmente este gajo – risadas apropositadas da assembleia presente, a que se seguiu uma prece mental, minha, de graças ao facto de o país não estar sob a lei marcial – mas não é perda de dinheiro pensar que ele veio à cata dos amigalhotes que tem por aí. Pelintras como ele, logo o puseram ao serviço, e vai daí a estatueta…

– Quinhentos contos no mercado negro – saiu-se o velho zelador da propriedade. – Até houve quem me tentasse com cinquenta notas…

– Dava para se manterem uns bons tempos.

– E não esqueça a carroça – disse ainda o zelador.

– Pois! A carroça cá do tio Chico estava lá parada, no caminho. Foi só pôr-lhe o raio da peça em cima e desandar. E o burro ainda renderia uns cruzados…

Estavam todos muito satisfeitos. A mim, apetecia-me praguejar. Claro que tudo se explicaria, mas não sem chatices. E, algures, esperava-me a tia Mimosa. Coordenei ideias. Tinha levado um bom (mau) par de coronhadas e sentia-me baralhado. Pensei, devagar, um bocado. Havia ali qualquer coisa… sim, talvez… A dar certo, seria a salvação. Convertido em herói do dia, não eram de temer represálias, lá na quinta.

Disse ao cabo umas coisas. Graças a elas, o foragido foi apanhado. O resto são três palavras. O dia foi curto para explicar, já na quinta, com uma suculência de pormenores, as peripécias da minha intervenção prodigiosa na captura do evadido.

À noite, desci com a tia Mimosa à eira e ouvi, então, algumas pseudoverdades, findo o que a doce senhora agarrou num fueiro que ali estava a (péssimo) jeito e só por sorte não me abriu a cabeça. Depois e finalmente, concordou em casar comigo.

Ah! Saibam os menos avisados ou os mais sarcásticos que a minha tia Mimosa tem 18 anos e é um bombonzinho que apetece mesmo desembrulhar.

 

PERGUNTA-SE: Bolas! Vocês sabem muito bem o quê!

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO