Autor

Marvel

 

Data

Abril de 1981

 

Secção

Enigma Policiário [57]

 

Competições

II Volta a Portugal em Problemas Policiais e Torneio de Homenagem a Sete de Espadas

4ª Etapa | Faro – Olhão – Tavira – Serpa – Vidigueira – Évora

 

Publicação

Passatempo [79]

 

 

SEM TEMPO PARA MATAR

Marvel

 

Na sauna do motel, Rosado Falcão passeava. Calmo e determinado. O plano, porque simples, seria bem sucedido. Previra tudo, fugindo às minúcias da complexidade para se firmar no aproveitamento de circunstâncias pertinentes e de rotina. A qualquer momento, o gordo Meireles, açodado de fúria, irromperia por ali para lhe fazer ver que se «esquecera» de assinar os recibos semanais. Entretanto, no próprio escritório de Falcão, Gomes e Castro, seu sócio, maioritário, naquele complexo turístico, cuidava de usar os méritos pessoais de economista no exame aos livros selados daquela empresa em crise.

O caricato do caso, porque todos, por mais escabrosos, têm o seu fundo de piada, era que as causas, ainda não conhecidas, do declínio da sociedade, poderiam ser atribuídas a qualquer dos sócios. Logo, o «suicídio» de Gomes e Castro não carecia de motivação.

Afinal, Meireles apareceu, realmente açodado e absolutamente furioso.

– E os recibos? Esqueceu que dia é hoje? Se lhe apraz saber, já perdemos três pagamentos espontâneos.

– Só três?

– Isso, brinque com coisas sérias! É capaz de ser o processo de livrar-nos do atoleiro…

– Coisas piores já se viram. Bem, não se congestione mais. Dê-me lá a papelada que faço isso aqui mesmo. – Pousou no banco de verga o bloco, com esferográfica apensa, que Meireles, dum modo reprovador, lhe passou para as mãos. E, com displicência, desenrolou a toalha que, à guisa de tanga, lhe envolvia a cintura. – Olhe, deixe-me isto na lavandaria, se não se importa.

Meireles estava a modos que escandalizado.

– Não tem outra?

– Bem vê que não. – O parco mobiliário da divisão, o banco e um cabide, mostravam um vazio desolador. – Tenho o roupão lá fora.

– E vai ficar por aí nesses preparos?

– Porque não?

– E se entra alguém?

– Terá entrado. Aliás é improvável, como sabe. Traga-me outra quando vier buscar isto.

Meireles caminhou para a porta, levando à exuberância o seu mau-humor.

– Ao menos, veja se tem isso pronto dentro de um quarto de hora.

– Assinar por extenso quase duzentos papéis, os joelhos a servir de escrivaninha? Está a brincar! Que tal meia hora?

Meireles afastou-se finalmente, manifestando em surdina a suspeita de que alguém andava a fazer pouco dele. Falcão perdeu o ar trocista. Conservou-se uns momentos na expectativa. Depois, pegou no bloco e abriu a porta. Pegou e vestiu o roupão abandonado numa cadeira. Através duma janela de cortinados claros observou a caminhada de Meireles, pela faixa ajardinada, na direcção da portaria.

Era tempo! E se alguém aparecia? Improvável, de facto; um risco a correr, de qualquer modo. Na verdade, o único. Valia bem a pena.

Gomes e Castro ergueu a cabeça e não mostrou nenhum prazer em vê-lo. Conservou o ar interrogativo.

– O Meireles apareceu com isto e estragou-me a sauna. – Apercebeu-se de que a tentativa de gracejo era traída pelo nervosismo, mas ainda acrescentou: – Parece que vais ter companhia.

O outro devolvera a atenção aos livros, e não redarguiu. Falcão sentou-se e começou a escrever. Nunca esperara ser recebido cordialmente, mas uma palavra, mesmo azeda, ter-lhe-ia emprestado tranquilidade. Teria de jogar, exclusivamente, com a queda notória do seu economista para os prazeres de Baco.

– Que tal um vermute?

Para seu alívio, respondeu-lhe um encolher de ombros significativo. Sem pressas, avançou para o bar-frigorífico e preparou as bebidas. Doses calculadamente pequenas, convite tácito à ingestão de uma só vez. Aumentou as hipóteses utilizando assim a sua. Gomes e Castro bebeu. De um só trago, como era esperado.

Um minuto depois, caía sobre os livros à sua frente, fulminado pelo veneno que Falcão dissolvera no vermute.

Com bastante frieza, Falcão certificou-se da sua morte.

Secou no roupão o seu próprio copo e foi recolocá-lo no bar. Pegou nos recibos e na esferográfica e saiu.

No corredor, abriu um armário e tirou uma gaveta para fora. Tacteando na penumbra, recolheu um bloco idêntico ao que recebera de Meireles e colocou este no prosaico esconderijo. Prosaico, portanto eficaz. Com provas dadas. Meteu a gaveta e fechou o armário. Conseguiu do bloco um folhear vertiginoso. Num único pormenor se destacava do outro: quase todos os recibos estavam já assinados por si! A meia dúzia em falta ocupar-lhe-ia os momentos que ainda faltavam para o regresso de Meireles.

O relógio, na parede, disse-lhe que haviam passado 20 minutos. Pousou o roupão na cadeira, ajeitando-se na posição original, e reentrou na sauna.

Procurou encontrar a calma que supusera caber-lhe após a acção praticada sem obstáculos. Com o bloco, palmatoou a dextra.

Qualquer coisa roía no seu interior. Enfim, fora feito o que tinha de ser feito.

Sentou-se. Destapou a esferográfica e preparou-se para a primeira assinatura. Ainda a não concluíra, quando a porta pareceu saltar dos gonzos.

– O sr. Gomes está morto! – No olhar alterado de Meireles havia um brilho perigoso. – Você… você matou-o?

Um frio gelado correu a espinha de Falcão.

– Endoideceu? Vai para meia-hora que não me mexo daqui!…

Mas que diabo disse você? Gomes…

– Não me diga… não tente convencer-me que não foi você…

– Está doido! Não parei um instante de escrever… Onde ia arranjar sobejos de tempo para andar por aí aos tiros?

Auto-congratulou-se de imediato. Boa, aquela dos «tiros».

– Não foram tiros. – O ânimo de Meireles decresceu em belicosidade.

Com gestos de autómato, folheou os recibos. – Telefonei a Gomes da recepção. Como não atendesse e sabendo-se que tinha de estar no escritório…

O tal calafrio voltou à medula de Falcão. Por muito pouco o improvável se não revestira de trágica – para si – viabilidade.

– Mas Gomes… Como pode ser? Vamos ver isso! Você deve estar enganado, Meireles.

Sair, apanhar o roupão, avançar para o escritório, tudo isso fez Rosado Falcão com o nervosismo adequado às circunstâncias.

A voz de Meireles perturbou-lhe a ilusão que vivia:

– Olhe, Falcão, nunca gostei de si, mas asseguro-lhe que o acuso sem prazer. Pagará da forma devida a morte daquele desgraçado.

 

PERGUNTA-SE: Em que bases cimentou Meireles a acusação?

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO