Autor Data Maio de 1981 Secção Enigma Policiário [58] Competições II
Volta a Portugal em Problemas Policiais e Torneio de Homenagem a Sete de
Espadas 5ª Etapa | Évora – Estremoz – Portalegre – Abrantes – Tomar – Coimbra Publicação Passatempo [80] |
NÃO ERA IMPOSTOR… Marvel Um
típico entardecer de Outono, entronchado num sobretudo de colossal espessura,
os pés a arrancar sons crepitantes do mar de folhas amarelecidas que
ocultavam o piso da alameda, encontrei-me perante uma histórica mansão
solarenga. 84
anos lançados no recôndito por uma majestade e
gentileza difíceis de figurar com palavras, acolheram-me com a usual
simpatia: –
Ainda bem que pôde vir, meu amigo. Necessitava deveras do seu conselho. –
Querida D. Carmen, receio que pretenda
lisonjear-me. Pois se… –
Caluda, caluda, que me está a parecer o contrário! Mas tire o sobretudo, faça
favor. Está muito frio, lá fora? –
Nem por isso. Mas lá se diz, e por alguma razão há-de
ser, que mais vale prevenir… –
E preveniu-se muito bem. – Acudi a tempo, que a grácil figurinha ameaçava capitular
sob o peso do sobretudo. – Mas sente-se, por favor. A história veio quando eu
saboreava o delicioso licor caseiro, de receita secreta e secular da família,
confeccionado por D. Carmen
de Vilalobos: –
Como é do seu conhecimento, meu marido fez a guerra de 14-18, incorporado no
nosso Batalhão Expedicionário. Não vou alongar-me em pormenores. Dir-lhe-ei
só, por ser o que interessa, que o tenente Rafael de Vilalobos
ficou a dever a vida a um obscuro soldado de infantaria, que saiu ferido da acção abnegada. Após o Armistício, já na pátria, procurou
localizar o seu salvador. Teve dificuldades em lográ-lo, mas veio a saber que
vivia só, em circunstâncias precárias, praticamente sem família. Tentou
ajudá-lo, mas esbarrou sempre com uma recusa formal. Após um breve período de
contacto, pessoal e epistolar, acabaram por perder-se de vista. D.
Carmen usou duma pausa. Nada daquilo me era
estranho, como amigo íntimo daquela família há longos anos, mas abstinha-me
de o manifestar. Não me privaria, enquanto pudesse, do êxtase dimanado da voz
melancólica daquela dama, que se diria feita da mais pura porcelana de Sévres. –
Tenho para mim que a morte, algo prematura, de meu marido teve que ver com o
episódio. Um remorso estranho, próprio das almas sensíveis perseguiu-o sempre
– e ajudou a roubar-mo cedo de mais. –
Para que se mortifica, minha boa amiga? Porquê recordar tais pormenores,
esquecidos no tempo? D.
Carmen sorriu levemente. –
Não esquecidos, guardados na arca enorme das recordações. Seja como for, o
certo é que algo sucedeu que os trouxe à realidade. Imagine que recebi ontem
uma visita curiosa. Um indivíduo de porte agradável e aparência modesta.
Intitulou-se amigo, pouco menos que irmão, do salvador de meu marido, ele
também já há anos falecido. Enfim,
usou de mil rodeios para me dar a saber que a alma do seu defunto amigo –
havia, agora, na sua voz uma subtil ironia – se congratularia com a minha
adesão, financeira, já se vê, a uma operação a que teria de ser submetida uma
filha sua. A rematar, entregou-me esta carta. Leia, por favor. Li
em surdina. «Porto, 14 de Setembro de 1956 Jovem amigo: Não penso ter muito mais tempo de
vida. O desgaste do sofrer moral pode actuar como o
mal físico. Assim se deu comigo. Nunca pude conformar-me com a semi-invalidez que me acompanhou dois terços da vida, a
mim, ao mocetão vicejante, apto e escorreito. Sinto, pois, como nunca, o fim
próximo. Tens conhecimento das condições em que
aconteceu o meu defeito físico. E também dos esforços de Rafael de Vilalobos para de algum modo me compensar. Tudo recusei,
incluindo a amizade que me oferecia. Porque à inutilização teria preferido a
morte, qualquer contrapartida que aceitasse teria, a meu ver, equivalência a
uma venda com fundamentos aberrantes. Isto, se me beneficiasse pessoalmente,
que outro caso seria se a dívida que Rafael de Vilalobos
contraiu para comigo se saldasse em quem me seja caro. Tu! Único, bom,
desinteressado amigo! É a herança que te lego, que mais não
tenho! Promete-me que, se um dia dele tiveres
necessidade, procurarás Vilalobos com esta carta.
Caso, como eu, já não exista, ambos, eu e ele, nos revolveremos nos túmulos
se os seus herdeiros, podendo-o, te não quiserem auxiliar. E agora, querido amigo, o meu abraço.»
Pousei
sobre a mesa a folha, escrita e assinada numa letra nervosa mas perfeitamente
legível. –
Esta carta será autêntica? –
Parece que sim. No espólio bibliográfico de Rafael existe a correspondência
trocada e a letra coincide. –
O que parece resumir a questão a saber até que ponto um benefício recebido
vincula um indivíduo ou os seus herdeiros. –
Não exactamente. Nunca me negaria a honrar a
memória de meu marido, mostrando a minha gratidão a quem o dia o preservara
para mim, sofrendo com isso. Simplesmente, odeio vigaristas. Mais ainda se
para atingirem os seus desígnios se servissem da doce saudade que me preenche
os dias. Quem me garante que o indivíduo que se intitulou destinatário desta
carta não a terá, pura e simplesmente, obtido por meios ilícitos, já que não
há o nome a apoiar a pretensão? Uma
criadinha de faces louçãs anunciou um visitante. D. Carmen
olhou-me significativamente. Era o homem! Entrou e pareceu embaraçado com a
minha presença. A carta sobre a mesa aumentou-lhe a intranquilidade. –
Gostaria, minha senhora, que não se verificassem especulações sobre este
assunto. Afinal, não fora a desgraça de minha filha… –
Acalme-se, senhor Andrade. Este senhor é um grande amigo, sabedor de todos os
antecedentes desta história. Por isso deve compreender que o haja consultado.
Ele
aquiesceu, pouco convicto. –
Mais uma vez lhe asseguro, minha senhora, que, não fora a operação,
vitalmente urgente e particularmente dispendiosa, a que terá que ser
submetida a minha pobre filha, V. Exa. nunca teria
tido conhecimento da minha existência, pelo menos nas presentes
circunstâncias. Daí que tudo arroste, mesmo a humilhação de usar dessa carta,
aliás, para um melhor retoque da tragédia, o último acto
consciente do meu infeliz amigo. Morreu no mesmo dia em que a redigiu. Por
ironia do acaso, dois dias depois, ao recebê-la das mãos do carteiro, ouvi da
boca deste uns remoques acerca da legitimidade do selo. Que era bem melhor o
meu correspondente tomar cuidado, pois para economizar o escudo do selo
arriscava-se a dissabores que recordaria por muito tempo. Como me lembro bem
de tudo isso! Quando o procurei… estava já sob a terra!… –
Com certeza, meu caro senhor – D. Carmen
levantou-se e sorriu-me graciosamente. – Meu amigo pode acompanhar-me? O
senhor perdoa-nos, sim? Na
salinha ao lado, apertou-me o braço com frenesi. –
Não há dúvida, este homem é um impostor. Ontem, disse-me exactamente
o que acaba de ouvir. Admiti o erro como mero lapso de linguagem, mas bem o
ouviu repetir-se!… –
A que se refere, boa amiga? À data da carta! Como pode ele … … Ah!
Vou imediatamente expulsá-lo! –
Um momento, cara amiga! Ainda devido à data da carta, lembro-lhe que … … Não
lhe parece conveniente interrogar melhor o cavalheiro? Poderão, então, surgir
pontos válidos de dúvida… ou confirmação. PERGUNTA-SE: Ou melhor: pede-se que
deduza e investigue de modo a preencher os espaços em branco. |
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© DANIEL FALCÃO |
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