Autor Data 31 de Outubro de 1999 Secção Policiário [433] Competição Prova nº 10 Publicação Público |
NA PAZ DA MONTANHA Marvel – …E isto aqui é uma paz
que nem lhe digo. Eu, ali, no cimo do monte, e o Tineca
nem vizinhos temos. Que este Tineca é de coisas,
nem liga à sorte que tem… Esganado, então. Nem se lhe arranca um bom dia.
Aqui há tempos, houve uma gripe que quase o levava. Dinheiro em médicos, remédios?…
Pois sim! Apertada a última porca, o
desalentado automobilista fez contas à sua sorte. Era uma questão de arriscar
ou não arriscar. Um empurrão forte de uma pedra a calçar a tempo a roda podia
ser a solução. “Podia” acontecer também que a roda afundasse de novo na cova
malvada. Com uma alavanca e uma ajuda extra, talvez resultasse… – Ouça, por acaso não me
arranja um tronco assim… – desenhou no ar as dimensões do objecto
pretendido. O espectador interessado
pesou o assunto com vagar. Acho que se arranja. Ali, na casa do Tineca. – Há uma casa aqui perto? Por que raio não disse? – E quem quis saber? Cansado, faminto e sedento,
contradição pura com a graça, Fortunato, recebida na pia baptismal, o interlocutor só teve ânimo para
segui-lo. A casa, aliás um casebre decrépito que se mantinha de pé por
aposta, apareceu após uma curva do carreiro de granito que se abria em leque
até à fachada. Oculta algures, alguma mina encarregava-se de o conservar
perenemente húmido e escorregadio. – Veja se lhe serve. – Entre
alfaias desconjuntadas em aparente abandono, espreitavam alguns troncos
ressequidos. – O Tineca não vai importar-se, se
você voltar a pôr o pau no sítio. Ele é esganado, mas lá por isso… A desempanagem resultou.
Condescendente, o aldeão colaborara no manejo do tronco, não sem vincar com
exagero o esforço aplicado. Devolvida a improvisada alavanca, o viajante
olhou suspiroso a entrada do casebre. – Não há mesmo ninguém em
casa? Pagava o que fosse até por um pedaço de broa. – Bem, se você paga,
arranja-se, que eu dou depois o dinheiro ao Tineca.
Sabe, eu e ele somos como família. – Se você acha… A entrada de casebre foi
franqueada por artes aparentadas com a prestidigitação. Começou, por
ajoelhar-se e enfiar um braço pelo escaninho criado por uma zona de madeira
apodrecida, rente ao solo. Coincidindo com um estalido, uma diminuta secção
da porta dobrou-se para dentro, revelando uma abertura por onde o braço marinhou
de novo. O som, agora, foi metálico, e a porta entreabriu-se. – O ar de miséria disto
tudo engana muito, sabe? – Loquaz, abdicara do silêncio durante a manobra. – Ele
tem lá dentro, bem escondido, um balúrdio que eu sei lá! Não que não vai em
bancos, e, tirando a pinguita, que lá nela aposta
mesmo, o que lhe vem da reforma e do peixe que pesca e vende é todo para
guardar. Aposto que até tem lá notas que já não circulam. Ah, e se você conta
só com a broa, vai ver a sorte que tem. Montes de fruta, da melhor, em cima
da mesa! Vai encher a pança. Repousavam sobre a mesa
anunciada um cachimbo semifornecido, uma faca romba
e um pequeno rádio de pilhas. E a fruta também lá estava, nos termos de
qualidade e quantidade referenciados, mas, para desgosto e ira de Fortunato,
as peras, as bananas, os kiwis, as laranjas e restantes quedavam-se, inglória
e incomestivelmente, estampados na sebenta e
retalhada toalha de oleado que cobria o móvel. – Para o inferno com o raio
do gozo! O riso do maroto
estrepitava. – Vá lá, então? Que
esperava? Não lhe venho dizendo que o Tineca é
esganado? Fruta, só se fosse alguma maçã bichenta e engelhada. Mas está bem –
aduziu, conciliador –, há pão naquela lata de folha. Fortunato ia estourando.
Não havia. – Não foi patranha, amigo!
A sério que não foi. Lá pão, o Tineca costuma ter. Fortunato acabou por saciar
a sede com dois púcaros de água fresca, que dela, sim, estava a cabana
provida. – … E quando o coitadinho
do Tineca… naquele fio de voz de cortar a alma… lá
foi dizendo: ‘O russo…’, percebi logo que falava do
louro do carro… Eu que o ajudei em tudo, tudo, que nem sequer me deu uns tais
cem paus… e mata-me o Tineca!… – Voltou a romper em
soluços. Acalmado: – Pois disse assim: ‘O russo… apanhei-o ali agachado… a roubar
o meu dinheiro… não percebi, mesmo quando toquei na porta e ela se abriu… depois,
a pedra… que dor…’ E repetiu mais isto, mais aquilo… E morreu! Acho que
morreu logo a seguir, jurava!… Nem mais um ai, nem mais um alento… Meu pobre Tineca! Chorava agora abertamente. – E que fez você? – Eu? Corri logo à aldeia.
Fui ao café do sr.Tomás, a ver se ele mandava a
guarda atrás do bandido. O sargento Elias consultou
o bloco. Nenhuma contradição. Aproximou-se do sr.
Tomás, um exemplar corrente, nutrido e rubicundo, dono do empório local. – Aqueles dois
entendiam-se? – Tanto quanto o tio Neca
se entendia com alguém. Nada que levasse o Roque a sentir-se autorizado a
entrar-lhe em casa quando quis. Se és-ta desgraça não tem sucedido e o velho
viesse a saber, bem mau seria. Dava-lhe de comer de longe
em longe, se lhe sobrava peixe. Vidas, enfim. – Abarcou com a mão tecto e paredes. – Esta casa já foi bem airosa. A morte
inesperada da mulher, vai para uns bons 30 anos, desinteressou-o
da vida. Comia porque sim, amealhava por vício. Um misantropo. Penso que a
leve afinidade que manteve com o Roque deriva de os pais deste terem morrido
por alturas em que a tia Grácia lá se foi. – Como subsistia? – Cultivava umas leiritas. Era, além disso, um pescador arguto. Uma ou
duas vezes por semana (ainda hoje lá foi) levava-me peixe à loja, peixe
excelente, nem lhe regateava o preço. E, olhe, isso do dinheiro escondido até
é capaz de ser verdade. Não precisava de tocar na reforma, que o dinheiro do
peixe sobejava das suas parcas despesas: pão, vinho e alguma ocasional
garrafa de aguardente. Vá lá, de longe em longe um
ou outro apetrecho de pesca. O resto amealhava-o rigorosamente. Havia quem
lhe desse uma ou outra roupita… – Para esses casos, existem
os bancos. – Não, ele não ia em
bancos. Sei porque sou eu quem lhe pagava a reforma e recebia a correspondência.
E nunca saía da terra. Constava logo, se saísse. – De que vive o Roque? – Tem um pequeno rendimento
certo, que vai dando. E também tira uns mimos das leiras que possui. Anda
para aí a fazer de lorpa a ver se a junta o dá por atrasado e lhe concede a
reforma, mas o que tem de mal é ser um acabado madraço. Perto do cadáver,
pontificavam dois pares de calçado, umas sandálias de enfiar no dedo e uns
socos rudimentares. No lado oposto, destacava-se um buraco na parede, quase à
altura do solo, produzido pela extracção de algumas
pedras. Um esconderijo clássico, fortalecido por uma arca manifestamente fora
do lugar. Um praça acercou-se. – O homem chegou. – Então não vê? É tudo
farsa daquele gajo! Matou e roubou o velho e quer que
eu pague por ele. Por isso me azucrinou os ouvidos com isso do pé-de-meia do
velho… – Não foi culpa dele que
você tenha aparecido por aqui. – Já expliquei que me
perdi. Facilitei, pronto! O atalho parecia bom. Às tantas, já não dava para
inverter a marcha nem para recuar em segurança. Depois, foi a maldita cova.
Veja lá, mudar a roda naquelas, condições!… Ainda por cima
com o tipo a mirar-me, a mandar piadas, a milhas de dar-me uma ajuda!… – Ele diz que ajudou
bastante; queixa-se de que não lhe agradeceu o trabalho. – Valha-me Deus, sargento,
que trabalho? A certa altura, segurou no tronco por segundos, coisa de nada.
E o calibre do tratante a meter-me na alhada de invadir propriedade alheia, a
gozar-me quando eu morria por um pedaço de pão!… O que eu devia era tê-lo
deixado à esquina, com uma orelha pendurada às costas. As ganas que tive!… O homem da guarda soubera
pelo comerciam-te que ainda antes de o Roque lhe aparecer com o alarme tivera
Fortunato no estabelecimento. Tratava-se de um comissionista. Comera qualquer
coisa e, antes de se meter a caminho da vila, onde pernoitaria, por falta de
alojamento na aldeia, deixara-lhe amostras e prospectos,
com a promessa de telefonar mais tarde a saber se faria negócio. Tudo muito
natural, mas… – Sargento, aquela história
de se perder na montanha… – Que tem? – Não acha esquisito trocar
uma estrada razoável por um caminho duvidoso? Quem “quisesse” perder-se, não
faria outra coisa. O casebre estava quase
silencioso, como se uma espécie de emoção se tivesse apoderado dos próprios
profissionais da lei. O Roque ensimesmara-se a um canto; Fortunato,
sucumbido, prestava termo de identificação a um guarda. E o sargento acrescentava
ao esboço do relatório que se certificara de que as meias, de lã, grossas e grosseiras,
único calçado usado peia vítima, estavam secas, ao contrário das calças,
abaixo dos joelhos. Aguardava-se a chegada do
delegado de saúde. Tardava, como era da praxe. Pergunta-se: – A identidade do assassino. – As razões da acusação. – A teorização das razões
que impeliram ao crime. |
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© DANIEL FALCÃO |
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