Autor Data 18 de Junho de 2000 Secção Policiário [466] Competição Prova nº 7 Publicação Público |
UM CASO… AO ACASO M. B. D. Confortavelmente
refastelado no seu canapé, o agente Barata estava de todo absorvido na leitura
do calhamaço que, naquela manhã, depois de aceso regateio, adquirira num
velho alfarrabista. Se porventura o ambiente
não estivesse tão carregado de fumo, provindo das constantes baforadas que o
agente Barata sugava do seu cachimbo – mais parecendo, por vezes, a chaminé
de um velho navio de carga –, certamente que alguma mosca curiosa já se teria
aproximado, lendo o título do cartapácio que estava a merecer tão atenta
análise. Assim, ficou sem saber que aquele era o “Livro de Memórias do Inspector XPTO”. “O caso foi um dos mais
curiosos e desconcertantes da minha carreira. Curioso, pelas declarações
daqueles que mais directamente contactavam com o
morto. Desconcertante, porque o seu desfecho teve algo de original e
imprevisto… “Numa friorenta e chuvosa
manhã de Inverno, o dr. Pina Boticário foi chamado,
com urgência, à residência do conhecido industrial Leonardo Bravinho mais
reputado ainda pelo título de ‘rei das rolhas’, dado que, segundo várias
versões, a sua fortuna procedia dos negócios que realizava com aquele
produto. Todavia, os seus serviços não foram necessários, porquanto, quando
se abeirou do Bravinho, este encontrava-se mudo e quedo, pois já não pertencia
a este ‘vale de lágrimas’. “Talvez por influência da
leitura dos numerosos livros policiais que se enfileiravam na sua biblioteca,
o dr. Pina Boticário tratou de comunicar
imediatamente com as autoridades, considerando um dever generalizado participar
à polícia sempre que uma morte pareça rodeada de mistério. “O corpo estava numa
posição vulgar e o rosto calmo do Bravinho nada dizia da maldade daquele que
em vida, no conceito de longa percentagem dos seus conhecidos, fora uma ‘boa
rês’. A morte surpreendera-o quando dormia e daí certamente a razão porque nem um gesto esboçara para se defender… “Logo se me depararam três
suspeitos: Francelina Bravinho, ‘rainha das rolhas’, Josefina Bravinho, filha
do casal e Barnabé Sampaio, noivo da garota. “No interrogatório que lhes
fiz, as respostas recebidas foram mais ou menos as mesmas, parecendo que
todos eles tinham lido pela mesma cartilha. “As antipatias que o
Leonardo tinha obtido cá fora, na realização dos seus negócios, também as
granjeara em casa, onde o seu feitio irascível e violento arranjava
permanentes conflitos com a esposa e com a filha. Barnabé Sampaio, igualmente
por diversas vezes tivera ocasião de conhecer o temperamento exaltado de
Bravinho, na última das quais chegaram a vias de facto, porque Leonardo
tivera o desplante de lhe dizer: ‘Não consentirei que case com a minha filha,
pois sei muito bem que a sua ambição é tirar-me o ceptro
de “rei das rolhas”!’ “O caso parecia-me bicudo.
Foi então que tive uma ideia… genial! – Barnabé, as provas culpam
a sua noiva e… – Não, inspector!… Ela nada tem a
ver com tudo isto, pois todas as culpas me pertencem… – Francelina, sabe que Barnabé se apresentou como culpado? – Mentira!… Só a mim devem
ser pedidas responsabilidades… – Josefina, sua mãe já me
disse ter sido ela… – Inspector,
não acredite nela porque não anda bem da cabeça! Fui eu quem… “Ideia genial, hem?!… A ‘coisa’ cada vez se embrulhava mais. Porém,
felizmente, dias depois, apareceu o relatório do médico legista e tudo se
aclarou…” A campainha do telefone
soou bruscamente, como um estampido de pistola, obrigando o agem-te Barata a
arriscado “número” de equilíbrio, tendo como base o canapé, pois, em
resultado directo do susto causado pelo imprevisto
retinir, esteve prestes a estatelar-se no solo. No entanto, o mesmo não
aconteceu ao calhamaço, que, esse sim, foi de
encontro à parede, ferozmente “lançado”. Com o cenho franzido
atendeu o telefone. O estrépito da campainha cessou e, em seu lugar ficou a
angelical voz cálida e meiga, cheia de inflexões suaves, ao mesmo tempo
sussurrantes e cristalina, que o agente Barata ouvia do outro lado do fio,
transformando o seu semblante num imenso sorriso, enquanto mentalmente tentava
adivinhar como seria a sua interlocutora. Se o aspecto
fosse proporcional à dicção… … afinal,
tratava-se de mais uma dessas campanhas agora muito em voga, via telefone:
que havia sido contemplado com determinado prémio e para o receber deveria comparecer
no dia tal, às tantas horas… Claro, isso mesmo, “tangas”… Entretanto a “patroa”
chamou o agente Barata e, por circunstâncias várias, este só mais tarde teve
ensejo de retomar a leitura. Daí resultar a interrogação: qual o desfecho de “um
caso… ao acaso”? |
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© DANIEL FALCÃO |
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