Autor

M. Constantino

 

Data

7 de Novembro de 1993

 

Secção

Policiário [123]

 

Competição

Supertorneio Policiário 1993

Prova nº 9

 

Publicação

Público

 

 

QUANDO O FEITICEIRO INVESTIGA…

M. Constantino

 

As estrelas empalidecem. O céu abre-se e a claridade denuncia-se… Os uivos dos lobos, o bramido do tigre, o rugido do leão que insuportavelmente ocupavam a noite, a par do apelo aflito ou da agonia dos animais mais fracos, dão lugar à calma, ao silêncio. A vida diurna retoma pouco a pouco o seu ciclo. Os pássaros expressam o seu chilreio, os herbívoros procuram o solo, vasculham raízes, arrancam cascas ou rebentos tenros das árvores e arbustos. Os comedores de frutos vagueiam de árvore para árvore, os carnívoros de pequeno porte embuscam, espiam, perscrutam atentamente os covis, cavidades rochosas, abrigo das suas presas.

Do lado oposto à aragem, cinco homens estão atentos à minúscula fonte que brota na floresta. São homens de corpos de bronze claro, troncos e membros nus, para além da exígua tanga que lhes ocultam os órgãos sexuais, cobertos de ligeiros pêlos, ombros largos, revelando força rude, rostos pesados, crânio achatado, olhos grandes que denunciam atenção impassível, empunham compridas e delgadas lanças de ponta aguçada e endurecida pelo fogo.

Afastado uma dúzia de passos, um outro homem descansa na retaguarda, de costas na areia, aguardando uma réstia de Sol: é U-ai-ai, um homem grande de carnes balofas, inábil no lançamento da lança ou no manejo da clava, sempre esfomeado e friorento – o único que usa uma velha pele sobre o dorso –, o acompanhante dos cinco caçadores e carregador obrigatório da tribo.

A imobilidade dos jovens caçadores é quebrada pelo apontar das lanças. Concentradamente, num entendimento perfeito, os olhos acompanham o aproximar prudente de um casal de gamos. As pontas das lanças visam os animais. Estes param timoratos: o macho ergue a cabeça e aspira o ar em volta, a fêmea, confiante, é tentada por um rebento baixo de uma árvore, eleva-se apoiada nas patas traseiras para o alcançar. Lentamente, hesitantes, chegam à água límpida.

As pontas das lanças seguem apontadas aos alvos indecisos. O macho soltou um sopro de ar pelas narinas dilatadas e baixou o focinho até à água. A fêmea, fortalecida pelo comportamento do companheiro, aproximou-se também sem receio. Neste momento as lanças voam… o macho cai atravessado junto do pescoço pela arma de Mo-a; a fêmea dá um salto inacreditável no ar, espalhando água e ocultando-se por momentos aos olhos dos caçadores. Milagrosamente furtara-se aos bicos das lanças e desaparece no mato. Os caçadores correm entre gritos e grunhidos, manifestando satisfação. Um deles atinge com uma pedra a cabeça do animal que se debatia. Gesticulam e discutem. Apanham as lanças. Gritam a U-ai-ai para carregar o robusto animal.

Com o gamo atravessado sobre os ombros, U-ai-ai prende as patas dianteiras e traseiras nas mãos enormes e sujas. Sente o cheiro do animal, do sangue fresco. Cai-lhe baba pela boca semiaberta, as entranhas ululam de agoniada apetência contida de morder a carne crua que carrega.

No alto do planalto rochoso escavado por cavernas, rodeadas do ervaçal e pinheiros atrofiados, a tribo vivia a indiferença de mais um dia. Mo-a, o velho chefe raquítico e desdentado, oculta sob a pele do mesmo animal as cicatrizes das garras do tigre. De ombros encolhidos, de pernas fracas, trocara o chuço pelo desenho: nas paredes da grande caverna, pintara em ocre vermelho ou amarelo, pacientemente extraído da pedra escolhida, reduzida a pó e humedecida, animais raros e aves nunca vistas, a arte de um deus incomum fazedor de imagens, olhado com respeito e veneração.

Poderia a caça rarear, a carne reduzir-se ao mínimo, o lugar tornar-se impróprio, infestar-se de espíritos malignos, jamais alguém, não obstante, concebera abandoná-lo.

Os caçadores chegaram e, com eles, o carrego de U-ai-ai. Entre o latir dos cães domésticos excitados, gritos da miudagem, comentários grunhideiros e mímicos dos adultos, a caça é disposta sobre a pedra meio lisa no centro do largo depurado.

Ou-lha, o chefe, acerca-se. Com ele vem Mong, o feiticeiro, uma figura sinistra, alto, esquelético, um rosto pintado de branco e riscado de vermelho, braços longos, mãos estreitas com grandes dedos de unhas compridas, sujas e recurvadas como garras. Mong levam-ta os braços.

No silêncio súbito, onde até os cães obedecem por instinto, Ou-lha aproxima-se da presa abatida, curva-se, localiza a ferida recente e suga um pouco do sangue ainda não totalmente coagulado. Os caçadores aproximam-se. Ou-lha embebe um dedo no sangue e assina-lhes nos rostos a marca do triunfo.

Agora o animal vai ser guardado na gruta gelada, até que o Sol fique a pino. Nessa hora, neste mesmo local, vai ser repartido pela tribo. Ou-lha, o velho-chefe-deus-sem-dentes, terá a parte macia, o coração, um pouco de fígado. Cada um tomará depois a sua escassa parte e ficará a lamber os dedos sujos.

U-ai-ai foi posto de parte, já ninguém se lembra dele. E um grupo de adolescentes que carrega o animal até à gruta afasta as ervas da entrada, retira a grande pedra que serve de tampão e volta a colocá-la solidamente, após deixar o gamo no interior húmido e frio. Regressam a correr incitando-se mutuamente com grunhidos e roncos. Vão agora juntar ramos de pinheiro seco em volta da grande pedra central, com o propósito do fogo nocturno.

Deitado sobre uma pedra, longe de todos, U-ai-ai sente o corpo fraco. Os seus olhos têm agora o olhar rígido do animal encurralado e faminto. Levanta-se, com o corpo a pulsar de decisão, curvado, faz uma grande circunferência, tanto quanto permitem os acidentes do terreno, até atingir a gruta cerrada. Os espinhos da fome não lhe roubam, entretanto, o entendimento. U-ai-ai é um inábil, um fraco, um abestalhado, não tanto para ser um néscio.

Vê os rastos expressos na areia, deixados pelos jovens, entre as ervas daninhas. U-ai-ai não vai deixar rastos. Escorrega do alto da gruta, pouco elevada, sobre a pele que retira do dorso e coloca sobre as extensas aliárias e gramíneas à boca da toca; empurra a pedra e, sofregamente, abre o peito do animal com um estilete de pedra; sacia-se. Volta a colocar a pedra no lugar e desloca a pele sob si até atingir terra dura. Ergue-se e volta pelo caminho antes percorrido. Não existe sentimento de culpa. Sente alívio. Com uma espécie de arrogância ostensiva, passa por debaixo do sabugueiro carregado de pequenas bagas negras, abana os ramos e recolhe na boca aberta uma chuva de frutos maduros… corre então a deitar-se no local que deixara antes. Momentos depois ressona ruidosamente.

O Sol atinge o ponto mais elevado, a tribo reúne-se, sentados ou acocorados em volta da pedra. Permanecem silenciosos. Esperam dominados por estranha emoção que não ousam transmitir.

Ou-lha e Mong olham o lugar de onde devem aparecer os rapazes com o festim, porém, em vez de gritos de alegria, o que mostram são exclamações de medo e revolta. Quando largam o gamo sobre a pedra, Ou-lha volta-se para a tribo e olha silenciosamente cada homem, cada mulher, cada adolescem-te… é um olhar de incredulidade e mágoa.

O feiticeiro dá um berro e corre até à gruta. Mong investiga cada pedaço de terreno junto da gruta e arredores. Passa pelo sabugueiro e tem o mesmo gesto infantil de U-ai-ai, mas, exasperado com o seu problema, mastigou e cuspiu as bagas ácidas. Regressa com os olhos no chão, troca um olhar com Ou-lha e, subitamente, com um bramido terrífico, inicia uma dança frenética, louca! Algo de infernal, insuportável!

Aproxima-se e recua sobre cada homem, iradamente, em saltos bruscos, os pés martelando a terra como um tambor mágico, estende as mãos que são garras aduncas, dominadoras, rasgam o espaço, olhos de fogo, hipnotizantes, parecem trespassar cada um, mais perto, cada vez mais perto, pisando-lhes os pés, mais insistente. Imobiliza-se de repente: exala ruidosamente. O homem na sua frente encolhe-se, treme e abate-se na poeira.

Mong faz um gesto. Dois homens agarram ferozmente o abatido U-ai-ai. As mãos são-lhe ligadas com lianas pelas costas, os pés atados ao cimo de um pinheiro vergado a que tiraram a rama. Quando o pinheiro volta a aprumar-se, U-ai-ai está de cabeça para baixo… vomita as provas do seu crime…

Mong, o feiticeiro, tem, agora, olhos de triunfo. Pega numa vara delgada e oferece-a, humilde, a Ou-lha: cada um dos membros da tribo, a começar pelo chefe-deus-velho, dá três pancadas fortes nos pés negros, marcados por pequenos círculos vermelhos, do condenado. As primeiras pouco efeito produzem nos pés calejados, pouco a pouco, a dor torna-se insuportável, infernal…

O rapazio, em pandemónio, redobra o xingamento a cada urro de dor…

Que factos levaram Mong, o feiticeiro, a descobrir o culpado?

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO