Autor

M. Constantino

 

Data

11 de Dezembro de 1994

 

Secção

Policiário [180]

 

Competição

Supertorneio Policiário 1994

Prova nº 12

 

Publicação

Público

 

 

DESDITA PARA TRÊS

M. Constantino

 

A figura triangular é, porventura, uma das mais antigas histórias da história. Todavia, existirá sempre um ângulo a explorar… no caso, esse ângulo, chamava-se Mariana.

Fora uma mulher bela: sonolentos olhos café-com-leite, cabelo cor de âmbar, num rosto moreno-suave, corpo delgado e coleante. Agora jazia como uma boneca abandonada e inútil, prostrada, com o crânio esmagado pelo impacto de uma bala. Aquela beleza vistosa, desejada, fora não a ventura, mas a desdita. Desdita para três: ela, a vítima; o marido, acusado da morte; o vizinho, rival vingativo e acusador, mas ao fim e ao cabo sem benefício ou glória. Mariana fora, em vida, uma mulher disputada. Jovem professora primária, fora destinada a ser cortejada, bajulada, ardentemente jogada nas propôs-tas de futuros felizes e ricos, em nome de um corpo perfeito e de um rosto divino. Seria divina a alma? Que se saiba, é assunto nunca abordado… Entretanto, o perfil era o de um anjo e a conduta visível, a de uma senhora.

Guedes, o abastado e verdadeiro puro-sangue do mundanismo, exibicionista, mas um sucesso no núcleo feminino, seguro de si mesmo, insinuou-se veladamente em rodeios corteses que acabariam por conquistar a deslumbrada moça. A história acabou de maneira imprevista. O reputado conquistador, cuja fama transpirara para além dos muros da cidade, saiu vencido e a vê-la casar com Bernardo Lopes, menos vistoso, porém, mais seguro. Era proprietário de vários empreendimentos, o melhor “armeiro” da cidade, um homem simpático, o equivalente em constituição de Guedes, embora mais velho quatro anos. Era considerado o melhor coleccionador de armas ao nível nacional pela sua diversidade e raridade. Guedes engoliu um sorriso. O pensamento mal se lhe movia dentro de uma espécie de viveiro de criação de vinganças. Um dia ousou telefonar para a escola e aparentando uma serenidade que não possuía, comunicou-lhe:

– O caso não é grave. É óbvio que te amo e não deixarei de ter-te como amante, um dia ou outro.

– Embora a paciência para aturar os teus dislates seja pouca, mesmo assim ofereço-te a minha amizade. Aquilo que julgas serem terríveis e incontestáveis verdades, para mim não passam de incoerentes mentiras – respondeu Mariana.

– Veremos.

Mariana e Bernardo iniciaram uma fase feliz. Amavam-se e compreendiam-se bem. Mariana deixara o ensino. Bernardo afastara-se um pouco dos negócios, adquirira uma vivenda luxuosa às portas da cidade e entregou-se ao prazer predilecto da sua colecção. Saíam, frequentavam festas, ainda que lhes agradasse muito mais o convívio íntimo da casa. Ocasionalmente, encontravam Guedes. Não se furtavam às palavras de cortesia, ainda que o repudiado, ostensivamente, procurasse os olhos de Mariana. Bernardo fazia por não reparar. Guedes adquirira a moradia vizinha, sabe Deus a que preço, separada tão só por um muro baixo não intransponível. A partir daí a intimidade do casal era observada com requintado propósito pelo olhar zombeteiro de Guedes, do seu lugar escolhido. Impossível ignorá-lo. Entre o casal surgiu um estado de espírito indefinido, intraduzível. Ela recolhia-se no quarto a pretexto de escrever um ensaio já pensado, escrevendo e rasgando, ou passava o dia na biblioteca; ele não tinha coragem de a contrariar. Se Mariana saía, Guedes saía pouco depois. Não ocorria a Bernardo desconfiar da fidelidade da esposa, embora dentro de si, comparável a erva-selvagem, um espinho tentasse cegar-lhe a confiança. Fechava-se, contudo, em si próprio, incapaz de dialogar.

Sem mesmo ter a noção do que fazia, viu-se a ler dois pequenos pedaços de papel, escritos pela esposa e caídos da cesta de papéis vazia. Eram letras, sílabas que queimavam como fogo, na medida em que os olhos toldados pelas lágrimas, o deixavam perceber.

“… Esses olhos onde eu vi… que me faziam saborear emoções… cumulavam de alegria, que eram… nem tudo, a tal ponto que deles só… possível que nunca… abandonado para sempre?... Estou desesperada. A tua Mariana.” Amarfanhou os papéis em desespero. Não procurou conhecer razões. Encheu a mala de viagem com alguma roupa e procurou o horário para a primeira passagem aérea. Chamou um táxi para se dirigir ao aeroporto, deixando um breve apontamento, sem outra explicação:

“Sigo Londres. Negócio urgente. Bernardo”

Para Mariana o choque foi inesperado e tremendo. Nunca o marido se ausentara sem a levar. Sentava-se junto do telefone, trémula, aguardando. Procurava compreender. Tê-la-ia Bernardo abandonado? Mas porquê, se nada fizera para além de amá-lo, como o amava agora e sempre?! Entre nuvens de fantasia e desespero, o telefone tocou. Quase deixou cair o auscultador no empenho da pressa, o coração a bater-lhe doidamente…

– Olá vizinha, então o maridinho abalou? Tem aqui o seu amigo…

Desligou. O telefone voltou a soar e atendeu.

– Não se zangue, querida Mariana. Vou pôr-lhe um cão de guarda junto do portão de entrada. Não se assuste, é um animal feroz mas não lhe fará mal, ensinei-o a conhecê-la pelo cheiro das suas roupas… calcule! Quero-a guardada para mim!

Atirou o telefone de novo. Através de uma janela, sem se mostrar, viu Guedes levar um cão grande, preso por uma corrente que se movimentava por todo o pátio fronteiro à casa e prendê-lo à casinhota que deixara afastada da entrada. Voltou a sair pelo portão gradeado de entrada.

“– Mas assim, Bernardo não poderá entrar!” – pensou aflita. Mas não se atreveu a manifestar tal receio.

A noite foi de chuva intensa. Rezara para que chegasse um telegrama ou uma carta. Algo que lhe oferecesse uma explicação. Adormeceu extenuada. A meio da manhã sente que mexem na porta lateral. Doida, corre a abrir gritando. “Bernardo!” Depara-se-lhe Guedes.

– Olá, minha linda É tempo de voltarmos ao “antigamente”. Venho buscar-te…

– Sai, sai, infame…

– Anda, não sejas má; tu queres-me…

Mariana, desesperada, foge para a sala de armas, procurando alcançar uma que embora saiba que não tem munições, possa intimidar o perseguidor. Guedes adivinha-lhe o intento, adianta-se, tira ao acaso uma arma e aponta-lhe, brincando.

– Menina, isto é como uma roleta russa… vais ser minha, ou morreremos os dois.

– Nunca – responde Mariana – Tenho-te nojo…

Com ar de mofa o homem aponta à cabeça da moça e aperta o gatilho. A arma dispara, quase lhe salta da mão com o impulso. Mariana está morta antes de cair. O assassino fica estático, surpreso. Não quisera matar! Ignorava que Bernardo não só tinha o espírito de coleccionador, mas orgulho em ter munições adequadas a cada tipo de arma; e todas em condições de funcionar, o que verificava periodicamente. Aquela ficara inadvertidamente com o carregador e pronta a disparar. A meia distância a bala não só fora mortal, como devastadora.

Em pânico momentâneo viu-se com uma arma pintada a tinta preta na mão, como um brinquedo, e um cadáver aos pés. Olhou em volta germinando um plano de escapar-se. Até então sempre se saíra bem nas suas situações mais apertadas.

Abriu a janela da sala e verificou que, do seu poiso habitual, veria tudo o que ali se passara.

O plano parecia-lhe com possibilidades de êxito. Limpou a arma com o lenço e devolveu-a ao cacifo próprio, lendo de modo vago a referência “S. A C M. – Modelo Militar 1935-A (usada pela França pouco antes da 2ª Guerra Mundial)” e pensando já nos actos seguintes. Procurou e calçou uns sapatos de Bernardo, colocando os seus nos bolsos do casaco. Saltou o muro para o seu lado, saiu pelo seu portão e entrou no do vizinho.

O cão veio ao seu encontro saltitante. Munido de um tronco meio grosso e enrugado que levara, acompanhou o cão até à casota e, rapidamente, abateu-o com uma pancada traiçoeira por detrás. O animal não teve hipótese, tal como Mariana. Deu uns passos em volta do cão para deixar pegadas no terreno simulando uma luta com o animal, dirigiu-se à vivenda com os rastos bem vincados. Entrou deixando terra molhada nos tapetes e na sala de armas. Apanhou a cápsula da bala com o lenço, calculou os cerca de três metros a que disparara, bateu os pés para deixar lama bastante naquele local, atirou com a cápsula para além do pé direito afastando-a um pouco para a frente. Formado o cenário, passou por cima do cadáver e voltou a percorrer o caminho até ao portão. Descalçou os sapatos sujos que atirou para um tufo de ervas junto do gradeamento calçou os seus, entrando calmamente em casa. Meia hora depois telefonava à polícia dando conta do crime a que assistira, perpetrado pelo vizinho e rival.

Só por coincidência nessa mesma manhã Bernardo desembarcara no aeroporto. Tinha pensado muito, estava mais lúcido e regressara para tentar indagar da presença da esposa na biblioteca. Se obtida a prova, estava disposto a implorar o perdão de Mariana pelo pensamento e acto insano de desconfiança. Infelizmente, o bibliotecário era um velho desmemoriado para tudo quanto não respeitasse os seus preciosos livros. Não lembrara a Bernardo consultar as fichas dos pedidos… Ficou-se a vaguear por entre as estantes, lendo títulos, folheando um livro ou outro… Sentou-se com um deles nas mãos, quase não lendo, com os olhos húmidos … saudade, ternura, humilhação, uma variedade de pensamentos e angústia…

Desceu à rua e, sem se preocupar com a bagagem deixada no aeroporto, chamou um táxi para o levar a casa. Percorreu o último quilómetro a pé, sentindo-se indigno do próprio nome. Aproximou-se do gradeamento e ficou a olhar admirado, para o cão morto, os rastos… casualmente estava junto do local onde os sapatos havia sido deixados e pegara num deles… O carro da polícia estacou junto de si. Foi-lhe dada voz de prisão pelo assassínio da esposa.

Gritando embora a sua inocência e arrependido do desvario que o levara a deixar a esposa só e à mercê do assassino, não podia desfazer factos como: a) Os rastos, do portão à casa, depois da morte do cão, coincidiam com os sapatos que lhe pertenciam, um dos quais estava na sua mão quando foi preso; b) Chegara de manhã cedo ao aeroporto e logo que se despachara, desaparecera; c) O velho bibliotecário não recordava minimamente a sua presença na biblioteca; d) Após exame científico à bala, verificou-se que era do calibre 7,65 MAS, disparada por uma SACM com capacidade para oito tiros, arma encontrada no seu lugar da vitrina com vestígios de disparo e sem impressões digitais, ao contrário das outras armas que continham vestígios de dedadas diversas; e) Era conhecido que a arma, projectada por Charles Petter, era a sua favorita entre outras favoritas; f) O testemunho do vizinho Guedes, que afirmara ter assistido ao crime através da janela aberta, e se dera mesmo ao trabalho de efectuar uma demonstração, e os elementos recolhidos pela polícia, indícios vários, fotografias, etc. etc… Nada parecia favorecer Bernardo.

Conhecidos todos os factos reais, ficam três perguntas indispensáveis; 1) Diz-se que todo o assassino comete, pelo menos, um ou dois erros, que o perdem. Tê-los-á cometido? Na dúvida, fica para o leitor detective a opinião justificada. 2) Algo mais requer uma certeza: será que o viúvo e principal alvo da polícia concluíra realmente pela inocência da morta? Com que bases? É que, sendo a conclusão afirmativa, nada justificava que a tivesse morto. 3) O leitor acompanhou a investigação, aliás minuciosa e competente, da polícia. Qual terá sido o seu veredicto? Justifique.

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO