Autor Data Dezembro de 2005 Publicação (em Secção) |
O PUNHAL MALDITO QUE VEIO DO PASSADO M. Constantino As
mãos nuas do cavaleiro afastam do rosto os ramos orvalhados. Segue a vibração
do martelo sobre a bigorna, na floresta nevoenta. O som torna-se mais audível
pela proximidade. O cheiro pestífero das águas da lagoa denuncia o fim da
jornada. É hora do afortunado – a condenação à morte do irmão e o suicídio do
pai, engrossam-lhe a riqueza – quão inescrupuloso personagem, deixar a
montada e dirigir-se a pé ao encontro do exímio armeiro. Acerca-se a passos
lentos… Tem dez Legiões, magica Spartacus, cogita
no título de Procônsul. O
armeiro curva-se reverente… “Dives pax vosbicum”… O gélido
cavaleiro teve um ligeiro arrepio, disfarçado. O armeiro estende-lhe o fruto
do trabalho: o punhal longo, bronze e fio de ouro temperados nas águas
fétidas da “Lagoa da Morte”, logo inquebrável, punho incrustado de pedras
preciosas. Pega
na arma, agradado, toma-lhe o peso… Subitamente, de um só golpe faz rolar a
cabeça de quem acaba de o servir… o corpo tomba ao lado. Limpa o punhal,
extrai com os dedos, sem tremura, um moeda de ouro, que atira para junto do
corpo… “Finis coronat opus”… Regressa à montada, indiferente. Pouco
após, durante a festa de despedida de duas das suas Legiões, que integram o
contingente para a Gália, um dos comandantes apropria-se, esquiva e
ilegitimamente, da arma. O roubado, consultada a sua estrela, não persegue o
ladrão. Certo é que, internado no território gálico sem estorvo, tal
comandante, jovem e ambicioso, adianta-se ao grosso da coluna com uma
centúria de “infantes” e “velitas” e dez cavaleiros. Caem numa emboscada. Os
galeses soltam-se das árvores sobre o inimigo. O punhal de ouro corta e
trespassa corpos… Na manhã seguinte, um dos muitos mendigos que acompanhou os
exércitos encontra-o numa mão dispersa, cujos dedos foram totalmente
decepados… O
tempo conta-se por dias, anos, séculos. Do punhal nada se sabia… Em
pleno Renascimento, entre os escombros de um sombrio solar medieval (sem
respeito pelos fantasmas do marido e sogro, que perturbavam o sono, tétrico
de visões, da formosa diva favorita do Rei, este, em cumprimento da promessa
que lhe fizera, ali mandou erguer um monumental castelo), ocasionalmente, um
operário descobre o valioso punhal. Levou-o. Foi assassinado antes de
alcançar recato. A arma desapareceu de novo… dias, anos, séculos decorreram. Sensivelmente
três séculos depois, um homem alto, forte, de cabelos louros, no período
áureo da sua existência, permite-se ostentar à cintura o punhal de ouro e
bronze, cabo coberto de pedrarias… Onde o encontrou? Fora o eterno
perseguido, parte da vida nas prisões e delas se evadindo graças à arte de disfarce
e expedientes loucos. Apreciava o nome de Jules, mas usava Blondel, Lebel, soldado Kaisenky. No
Regimento de Bourbon serviu como Jacquelin. Vida
espantosa! Mesmo na notoriedade, bateu-se contra polícias ou contra ladrões,
por vezes simultaneamente com uns e outros. Já septuagenário, é julgado por fraude, sequestro e escroqueria: sente-se
em casa, tal é o seu à-vontade! Mas onde se encontra o punhal, cuja posse
parece ser por si só, uma ameaça? Na
louca cavalgada dos anos, por estranho que pareça, entra Portugal. É um
punhal maldito com uma história não menos sinistra. Depois
que me foi revelada a sua existência, vejo o refulgir do seu gume de ouro. O
brilho das pedras, a adejar-me sobre a cabeça. Na escuridão do quarto,
anormalmente silencioso, ouço um som horrível – o do meu coração saltitante!
Grito e acordo! Que sonho terrífico! Terrífico, mas real. Obcecado,
recolho elementos, estudo-os, posso garantir: o Cavaleiro existiu, descobri o
seu nome (Qual é?) e, a verificar-se o cruel crime na actualidade,
o personagem era facilmente identificável (Como?); o Castelo (Qual é?)
representa o mais belo protótipo da arquitectura
referida; o ás das evasões fora-me fácil de identificar (Quem é?). São
estas as quatro questões que deixo à inteligência dos leitores. |
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© DANIEL FALCÃO |
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