Autor Data 9 de Julho de 2006 Secção Policiário [782] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2005/2006 Prova nº 10 Publicação Público |
OS ENIGMAS DO HOMEM QUE NÃO EXISTIA… M. Constantino Acorda. Uma dor aguda,
tenaz, aperta-lhe a cabeça apoiada em algo duro e frio. Tenta abrir os olhos;
as pálpebras mantêm-se cerradas… Rola e senta-se. Abre, enfim, os olhos.
Surpreende-se, ao atestar que jazia sobre o empedrado de uma rua estreita,
desconhecida! Onde está? Ergue-se, cambaleante. Inconsciente, olha o pulso:
horas? Devia ter um relógio! Procura a carteira – nada. No pequeno bolso do
colete encontra uma moeda de 5 escudos e dois talões de bilhetes de cinema…
Com quem os compartilhara? Não se lembra! Não se lembra, sequer, do seu nome…
o próprio nome… Não se recorda de nada desde o momento em
que… um véu opaco ergue-se entre ele e o seu passado. Não há momento,
não há nome. Simplesmente, não existe! Sente o pânico crescente… Começa a
descer a rua até à larga avenida, procurando o contacto com as pessoas.
Ninguém se lhe dirige – é como uma sombra! Procura uma esquadra de
polícia, mas detém-se. Que diria? O nome que não tinha? Continua ao acaso,
agarrado à ténue aragem da sobrevivência, ainda que sinta um enorme desejo de
fuga de si mesmo – mas quem é o si mesmo? Sente cansaço. Fraco – um misto de
terror e loucura a apertar-lhe o peito. Senta-se num banco de jardim. Um
polícia passa, olha-o, encolhe os ombros e segue. Adormece sem dar por isso.
Acorda em sobressalto: um bando de garotos esforça-se por lhe tirar o casaco,
o colete. Fogem… Recolhe a roupa pisada, suja. A moeda, a sua única fortuna,
desaparecera… Desalinhado, volta a vaguear… Caminha, caminha. Os olhos,
velados pelas lágrimas, atravessam os vidros das casas de comida. Estaca.
Pareceu-lhe reconhecer alguém. Entra de olhos postos no indivíduo, que
denuncia pasmo. Diz-lhe: – Parece-me um rosto
conhecido! – Faz sentido – respondeu o
outro. – Então, pode dizer-me quem
sou? – Não. Creio jamais tê-lo
visto! – Não sei quem sou… estou
perdido. E tomba. O outro ampara-o,
senta-o, e dá-lhe a beber um golo de vinho. Sente o calor subir-lhe às faces…
Alimenta-se e conta a sua inexplicável odisseia. O homem que o auxilia, um
ex-comediante, cuja reputação caíra abruptamente sob suspeita de abuso de
menor, marginalizado pela sociedade, compreende. Também ele, de certa forma,
perdera o nome. Dá-lhe casa e até nome. – Não tens nome? Eu sou
Simão; portanto, tu vais ser Tiago! A casa para onde vão
(hipotecada), nos arredores da cidade, é ampla, seguida de um campo largo
percorrido por dois dobermans de mandíbulas
selvagens, que obedecem, cegamente, ao dono. Simão leva-o a um
guarda-roupa, com um espelho, a corpo inteiro, na face da frente da porta,
repleto de roupa vária: – Tira esses farrapos, faz
a barba, toma um banho e serve-te… O teu quarto é na porta a seguir… Coabitam cerca de um mês,
com Simão entregue ao passatempo favorito do rebentamento de bombas que
construía (onde iria buscar os explosivos e porquê a passividade dos vizinhos
e polícias?). “Tiago” observa, do alto do terraço. Procuraram notícias junto
das autoridades competentes. O Inspector Óscar
ouviu-os, pouco atento, não desviando o olhar do álbum de pinturas célebres.
Passa-os ao Departamento de Pessoas Desaparecidas: Não há registo! Será que
não existe mesmo? Mas o destino guia a
desgraça e a sorte! A impulsão desastrada de uma brincadeira do amigo fá-lo
tombar na escada. Acorda um outro homem! – Onde estou? Quem é o
senhor? Eu chamo-me Diogo Vale e habito com o tio Dick
na rua…, telefone…! Ninguém atende… “Tiago/Diogo” treme. Simão
chama um médico, cujo diagnóstico anima: "Leve contusão, amassado, não
fendido; fadiga pós-amnésia regressiva"! Dá-lhe um sedativo e recomenda
exames. Recuperado, recorda: o avô
vai trabalhar para os Estados Unidos. Ajuda numa loja de velharias. Sem se
saber como, dez anos depois, tem 36 anos e meio milhão em obras de arte. A
avó morre com a pneumónica, o tio Dick (Ricardo)
junta-se ao pai e casa com uma australiana, proprietária de três mil hectares
com ovelhas e gado bovino, que irá acumular com o chorudo
pecúlio do avô, já que o seu “velho” recusa a aventura americana ou auxílio. Tem 16 anos, está só, de
mãos vazias e o cérebro cheio de sonhos, quando o tio o chama. Vai, mas não
se adapta. Aos 22 anos, voluntário do Exército norte-americano, é evacuado do
Vietname, em 1966. Quatro anos depois, regressa a Portugal. Tudo corre bem.
Por combinação com o tio, vai embarcar para a Austrália – ver o que tem e
negócios. A noiva pretende acompanhá-lo ao aeroporto. Têm tempo, vão ao
cinema. Discutem, zangam-se e separam-se. Vagueia, quando é atacado e
roubado. Sabe pelo advogado do tio (dr. Alves), que não conhece bem mas em quem confia, que
não notaram o desaparecimento, pois o tio morrera num desastre de viação com
o criado, fiel companheiro. A passagem de avião fora utilizada e as bagagens
levantadas. Não tem pressa de ir para uma casa vazia. Encarrega o advogado de
vários assuntos. Simão apoia, triste, mas por vezes agreste com a próxima
partida do amigo. Telefonou ao Inspector Óscar (já
o havia feito antes) e promete-lhe mostrar a galeria de pinturas do tio,
agora sua, se o levar a casa. Óscar Alvarinto fica
ufano e aparece na hora marcada. Sinaliza a sua presença à porta. Diogo
aparece na outra entrada e pede-lhe que entre. Vai buscar alguns pertences ao
quarto. Ao passar por uma porta aberta, Diogo levanta a mão, saudando… Óscar,
que segue ao lado, vê um vulto que retribui, silencioso. – Simão está amuado –
comenta, tomando o braço do Inspector. A moradia voltada a leste,
uma porta larga com dois degraus, ladeada por duas janelas-portas, gradeadas,
destaca-se. O advogado já espera com as chaves… Diogo abre os braços ante a
magnífica sala. Por cima de uma falsa lareira, a Mona Lisa destaca-se e anula
o valor dos outros quadros expostos. Um piano, flores… Diogo pega no vaso de
antúrios vermelhos escarlate e coloca-os no centro da janela. – É o seu lugar! E, voltando-se para o Inspector, que parecia abismado diante do quadro da
lareira, comenta: – É fabuloso, mas é uma
cópia! Na verdade, em 1911, os possíveis compradores da obra eram levados ao
Louvre, onde o negócio era feito e o cliente convidado a marcar as costas do
quadro com um sinal secreto para ter a certeza de que era o que lhe seria
posteriormente entregue. O quadro desapareceu entretanto. Seis americanos,
pelo menos, entre os quais o avô, pagaram 300.000 dólares pelos quadros que
haviam assinalado sem dúvida. Quando o quadro regressou ao museu,
descobriu-se o logro. Como seria isto feito? Claro que sabe, para um bom
polícia não há enigma insolúvel. Também sabe que há uma forma infalível de
identificar um Da Vinci. Ora, não será este a verdadeiro Mona Lisa? Deixo-lhe
o enigma. Fique à vontade! Dentro de duas horas, parto definitivamente para a
Austrália. Cumpro a vontade do tio. Deixo procuração para venda de tudo. O
doutor (“Não se esqueça de pagar a hipoteca de Simão; é o menos que posso
fazer!”) leva-me daqui para o aeroporto. Na tarde do dia seguinte,
dois rapazes descobriram os cães mortos e um corpo desfeito. Óscar Alvarinto só posteriormente tomou conta do caso. De
concreto, sabe que os cães foram mortos, cada um com um tiro na cabeça, à
queima-roupa. Quanto ao corpo, é um enigma: suicídio ou acidente, já que não
vê indícios de crime? O médico legista diz-lhe: – O corpo não tinha braços
e a parte frontal do rosto está esfacelada pela explosão da bomba! A única
particularidade que encontrei com algum valor, se é que o tem, pois não lhe
encontro encaixe, é uma incubação de bilhárzias nos vasos sanguíneos. E ri. – Não testei o que resta da
cabeça. Vou tentar reconstituir o rosto; não prometo. Dos membros superiores,
bam! A bomba deve ter-lhe rebentado nas mãos… Trinta e dois anos volvidos, chegam-me às mãos todos os apontamentos e relatórios do Inspector Óscar Alvarinto, de
quem sou legatário. São histórias fabulosas para contar… Entretanto, nada
encontro relacionado com a maneira como foram resolvidos os enigmas expostos.
Que pensam, face ao transcrito, os nossos leitores? Façam os vossos
relatórios, documentados! |
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© DANIEL FALCÃO |
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