Autor Data 14 de Maio de 2007 Competição Prova nº 7 Publicação CLUBE DE DETECTIVES |
O LADRÃO GENEROSO E O HOMICÍDIO IMPOSSÍVEL M. Constantino O “avozinho” de barbas
brancas, onde se destacam uns óculos cujos vidros teimam em embaciar-se,
corpo frágil, meio curvado, que dá pelo nome de “Sete de Espadas” – 99% dos amigos
e admiradores desconhecem Manuel José Tharuga Lattas – é um vulto grande no
policiarismo. Sim, grande, porque os homens não se medem pela estatura, tão
só pela estrutura… Pioneiro da investigação
policiária nacional, apadrinhou uma vasta gama de adeptos que iniciou e
relançou na arte do raciocínio e da lógica, tendo criado sólidas e duradouras
amizades! Inteligente e humilde,
teimoso (somente um pouquito…), capaz de se entregar, de alma e
pecuniariamente, ao que acredita, é bem um símbolo para uma certa juventude
que se tornou adulta. Mas peçam-lhe memórias, um
recorte, um relatório – está sempre num caixote, disperso entre caixotes,
ainda por abrir! Duvida-se que a luz da publicidade veja tal conteúdo, sem
passar por cima do seu cadáver (evento em ralação o que, aspiramos, aconteça
ainda tarde, muito tarde). De resto, excluímos os defendidos segredos … I Num apelo à mente,
recuamos, velozmente, no tempo, até ao ano de 1967. Dois dias antes do início
do Verão, a polícia foi alertada para um assalto nocturno a uma instituição
bancária. Uma série de dois assaltos, no decorrer, aproximadamente, de um mês
(ainda que o primeiro houvesse sido classificado de acção política), que, de
comum, só tinham o desaparecimento das notas; se bem que, neste último, de menor
valor – ainda assim, elevado para a época. Uma anormalidade e um desafio às
polícias… O gerente, o primeiro
funcionário a chegar, encontrou a porta da rua aberta. Estranhou! Dirigiu-se ao reservado do
guarda-nocturno e achou-o adormecido sobre a mesa. Não despertou, aos gritos
e sacudidelas. Em desespero, deparou com a casa-forte arrombada e desprovida
da maior parte dos seus valores. Coube ao Sete, por
disponibilidade duvidosa ou mais-valia reconhecida, avançar para o teatro das
operações, com um grupo de investigadores e técnicos. Meticuloso, incansável
e intuitivo, à medida em que ia vendo e ouvindo, preenchia e encaixava as
peças do puzzle: O roubo ascendia a 5000
contos, em notas de 1000 escudos – desprezara-se as de menor valor –
recebidas na véspera; o funcionário encarregado da contagem, que devia
preencher um boletim com o número das notas, não o fizera e era o único dos
empregados que não comparecera ao serviço; a entrada no estabelecimento de
crédito dera-se através de um túnel aberto desde o prédio vizinho, arrendado
por uma empresa que iniciara obras e as abandonara, entretanto; o sistema de
alarme foi anulado por uma cobertura de chumbo idêntica ao sensor e só
poderia ter sido desactivado durante o funcionamento do banco; uma botija de
oxigénio, munida de regulador e manómetro, fazia admitir a utilização de uma
lança térmica, se bem que acreditasse no uso de um potente maçarico de
oxigénio ou oxiacetilénico, bem aplicado ao local certo, que rebentou com o
sofisticado fecho da casa-forte; o guarda-nocturno fora drogado com o café da
garrafa-termo que levara para se manter acordado, sendo evidente que quanto
mais sono tinha mais bebia, a ponto de requerer cuidados médicos; o empregado
ausente, J. Soares, servira-se de um copo do mesmo café. Deste conjunto de factores,
concluíra haver um cúmplice, um empregado ligado aos assaltantes. J. Soares
era a hipótese provável. Quando uma dupla de agentes
arrancou Soares da cama, o homem estava em farrapos – suava, chorava,
reclamava-se inocente; quando, porém, entrou na sala de interrogatórios,
“extinguiu-se”… confessou e denunciou: Confessou estar implicado
na preparação e roubo; denunciou Tó Dores, Januário Oliva, Damião e Juan
Espanhol. Depois que saíram, levando
o dinheiro num saco de plástico reforçado, deixaram o Dores no “Banco do
Poeta”, atrás do qual seria enterrado o dinheiro, num buraco já aberto e
disfarçado. O Banco do Poeta era uma rocha volumosa, como que caída do céu em
local errado, com a particularidade de conter uma concavidade que se oferecia
como uma poltrona, inserida no parque que estava a ser plantado de filas de
árvores (tílias) – seis ou sete já completas – para evitar o estacionamento
de veículos. Começou o cerco… Na busca ao parque,
meticulosa em extremo, não foi encontrado o dinheiro. O "Limpeza", ao
contrário dos comparsas que não deixaram rasto, estava sossegadamente a fazer
o almoço. Tinha um riso fácil, contrastando com o olhar, agudo e frio como o
aço. Não se revoltou; limitou-se a negar, negação que manteve durante muitos
dias de interrogatório. Depois, o laboratório deu o veredicto: entre as
dedadas várias dos empregados, um fragmento de impressão digital no cofre,
resultante (naturalmente) de descosimento da luva, revelava, depois de
aturado estudo da grandeza e configuração dos poros das glândulas
sudoríparas, a presença de António Dores. Ameaças, promessas, armadilhas,
nada demoveu o homem sobre a actuação no assalto e local onde escondera o
dinheiro. Julgado, sem necessidade do testemunho de Soares (suicidou-se, na
cela, ao terceiro dia), foi condenado a cinco anos e cinco meses de prisão. II Cumprida a pena, quem saiu
a porta da liberdade era um fantasma pálido, angustiado, que pouco tinha a
ver com o homem de riso fácil, que já não existia, de olhar de aço, que perdera
no interior de alguma cela. Restava-lhe o inamovível segredo: provocações,
pancadas que o atiraram para a enfermaria, ameaças de morte dos companheiros
de cativeiro… nada lhe abriu a boca! Transpôs a porta, com um
pensamento – “nunca mais”! Esperava-o alguém, delgado e pálido como ele. Um
embrulho passou de mãos – uma arma e numerosas munições – sem se olharem, num
murmúrio – “eles vieram… vigiam-te”. Caminhou até ao táxi que o esperava e
levou até ao parque. Passou junto ao local onde guardara o dinheiro, sem
estremecer, e foi sentar-se no “Banco dos Poetas”. As árvores plantadas
outrora haviam crescido pouco, observou, mas legitimavam o seu destino –
impedir o estacionamento. Um momento depois, entrou no bulício da cidade, à
procura de pousada conveniente. Passaram-se alguns dias. Em
passo curto, o Sete parecia distraído, como sempre. Subitamente, capta o
rosto de alguém, que reconhece negativamente. Memória… memória… ajuda-me! E a
memória ajudou – “Mas é o Limpeza! E vai desconfiado, com a breca!” Pára
diante de uma montra, sem ver a mercadoria. Através do reflexo do vidro,
descortinou, vagamente, um homem de boné, do outro lado da rua, olhos fixos
na figura do Dores. Este pára. Faz como quem esqueceu algo; hesita em voltar
para trás e deixa-se ultrapassar pelo homem do outro lado do passeio. Na rua
estreita do desgastado bairro (ninguém desconfiará da possível coincidência
de interesses) são os únicos viventes visíveis. Um carro ao fundo da rua, na
esquina; uns miúdos, a brincar aos cowboys (Pum! Pum!), que atravessam, em
correria; e os três homens que parecem ignorar-se: o homem do boné, o Dores e
o Sete. O investigador serve-se do
passeio para atar um sapato. Quando levanta os olhos, já não vê o
desconhecido. Descortina-o, saindo do local para onde o Dores se dirige; este
parece cambaleante, quando sobe o passeio. O Sete apressa o passo, a tempo de
o ver entrar num recinto aberto, abrir a porta à esquerda, entrar e fechar a
mesma à chave; do passeio contrário, ouviu, nitidamente, o correr do trinco e
o cair de uma tranca. Segue-se o silêncio e,
segundos depois (não pode avaliar quantos), quando a curiosidade o faz
atravessar a rua para apontar o número da porta, dois acontecimentos quase
simultâneos se sucedem – ouve-se um tiro por detrás da porta onde Dores
entrou; o carro à esquina arranca, ruidosamente e em velocidade! Não há
vestígios do homem do boné… A casa é um antigo armazém
de exposições, com um corredor sempre aberto, três portas e três janelas;
porém, a do antigo assaltante tem um gradeamento externo e uma rede metálica
interior, ao contrário das outras, que têm vidros. Bate na porta, chama e
tenta mesmo forçá-la, quando vê que não adiantam, naquele tipo de fechadura,
as gazuas. Entretanto, da porta à direita, saiu um idoso com cara de doente:
– “estava deitado, não me sinto bem… ouvi o tiro, ainda bati na parede, mas
não ouvi mais nada”. Homem estranho este (pensa o Sete); aluga o quarto,
recusa contactos e tem passado o tempo a mudar fechaduras e a pôr trancas… Os miúdos que brincavam aos
cowboys, atraídos sabe-se lá porquê, haviam-se aproximado. Pede a um deles
para chamar um polícia. Ao idoso solicitou um banco, para tentar ver, através
da bandeira estreita da porta. O polícia chegou, meio desfardado. Estava de
folga e morava perto – o miúdo sabia que vivia ali um polícia e não hesitou
em ir chamá-lo a casa, sem cuidar de horas de serviço e coisas parecidas.
Mais alto do que o Sete, o polícia subiu ao banco solicitado. Espreitou e só
viu as pernas de um homem caído; mais nada nem ninguém. Enrolou um lenço à
mão e bateu com uma pedra, que foi buscar. Partiu o vidro e, com esforço,
conseguiu tirar a bandeira. Nem assim viu mais, pois a abertura não dava para
meter a cabeça. Foi então que um dos garotos se ofereceu – “eu entro por aí,
se me elevarem, e abro a porta!” – Espera, diz o Sete. Não
tens medo? Pode haver um homem ferido ou morto; és capaz? – Claro, respondeu
resolutamente. Sou o xerife do bairro! Olhou para o polícia, que fez um sinal
afirmativo e pegou no rapaz pelas pernas, elevando-o. Ele encolheu-se, rolou
pela abertura e deixou-se cair de pé, do outro lado. – Tou cá! Uns momentos
depois, ouviu-se bater na tranca, que foi tirada, a chave rodar e a porta
abrir-se. O rapaz, muito pálido, com as mãos agarradas à barriga, saiu e
escapou-se para a rua. O polícia sorriu para o Sete – vai aliviar a barriga… O Sete espreitou,
cuidadosamente, impedindo o polícia de entrar – o “Limpeza” terminara a
carreira; estava morto, com um tiro na cabeça! Limitou-se a confirmar a morte
e pediu ao polícia para ir comunicar ao comando, solicitando, em seu nome,
uma brigada da P.J. – investigadores, técnicos e médico legista. Enquanto
aguardava – depois de saber que o doente vivia só e que o vizinho do lado
esquerdo estava de férias na aldeia, antes de a vítima arrendar o quarto –
mandou o idoso para casa. O polícia perdia a folga e ficou à porta externa,
com ordens para afastar curiosos. Sete calçou as luvas de
látex e voltou a entrar, observando cuidadosamente – a porta, além da
fechadura rara, era reforçada por uma tranca de aço entre dois grampos,
dispositivo que segurava, também, as duas meias janelas de madeira, para além
da rede e gradeamento que vira no exterior. Deu voltas, a procurar a arma,
que não encontrou. A “coisa” cheirava-lhe a esturro! Abriu a porta da casa de
banho, único compartimento do quarto, com a chave que estava na fechadura.
Não tendo encontrado nada, perguntou-se por que estava a porta fechada à
chave, concluindo, contudo, que o trinco não segurava a porta… Sentia-se desorientado! A vítima
recebeu um tiro na cabeça, no interior do quarto; não fora ferido no
exterior, tinha a certeza, pois não se encontrava ninguém no recinto; também
não havia arma à vista. Foi buscar a pedra e bateu toda a parede e o solo, no
sentido de encontrar um alçapão ou passagem secreta, já que excluía uma saída
pela porta ou janela. Excluídas as hipóteses, viu-se a procurar uma qualquer
máquina-armadilha que disparasse sobre o homem, um engenhoso truque mágico
para fazer desaparecer a arma, depois de disparada, ainda que isso lhe
parecesse um autêntico disparate! Nesta expectativa, o Sete
apostava num homicídio impossível e punha em causa todas as técnicas, de Poe
ao presente, já que punha de parte um suicídio, também impossível dada a
ausência da arma. A não ser que o homem a tivesse engolido depois de morto
ou… desse um tiro na cabeça, simplesmente apontando um dedo!!! Tem de haver uma
explicação, cogitava. Mesmo um artista do crime jamais se poderia requintar
na perfeição da sua melhor obra de arte! E ao Sete, que, na sua longa vida,
sempre fora o investigador triunfante, depara-se um mundo diabólico de
incertezas… o espírito lógico e a clareza de raciocínio parecem meras
palavras sem sentido! Meia hora depois, chegam
dois agentes da Judiciária, um perito e, quase milagre!, o médico legista.
Fotografias, esquemas, medições de todos os ângulos, impressões digitais,
vestígios e exame feito pelo médico, que não se pronunciou. No levantamento do corpo,
surge, debaixo, uma bola de papel, que se verificou ser A4 dactilografada,
sem assinatura, com o seguinte texto: “O dinheiro em não vais gastá-lo cá. Adeus, traidor;
chegou o momento de te consumires no inferno”. Uma frase que os jornais
reproduziram e comentaram fortemente. Mas foram precisos quase dois dias para
chegarem os principais resultados. O Sete foi chamado à
morgue, para lhe mostrarem, antes do golpe em Y, o tosco desenho, dir-se-ia
tatuado pelo próprio, de um círculo envolvendo a , que calculavam fosse uma
mensagem. O legista acrescentou: a arma não estava no corpo; apesar do seu
desaparecimento, voto pelo suicídio: um tiro disparado a uma distância,
provável, de 10 a 15 centímetros, a bala entrou um pouco acima do ouvido,
destruiu a parte inferior do lobo parietal direito e foi alojar-se no
parietal esquerdo. O Laboratório identificou-a como calibre 7,65, sem
historial. Encontramos partículas de pólvora incombusta misturada com sangue,
bem assim na mão direita – elemento crucial a indicar suicídio – ainda que se
saiba que o homem praticava, com frequência, tiro e podia tê-lo feito no
próprio dia. Esta é a verdade? – Suicídio? Mas… como?
Verdade? Para o Sete existem três
verdades: uma que é a verdade nua e crua; outra a verdade como parece; ainda
outra a verdade de cada um… O dia estava repleto de
surpresas. Quando chegou à Central, esperava-o uma carta anónima, na qual o
correspondente dizia que, na madrugada do roubo do banco, chegou cedo ao seu
local de trabalho – era um dos plantadores das árvores – e viu um homem a
esconder um saco. Quando o homem se foi, desenterrou-o e viu o dinheiro, que
foi pôr a casa. Pelos jornais, soube da prisão e, durante os cinco anos, pelo
Natal, enviava um donativo de mil contos a uma Instituição de Caridade (podia
ver, nos jornais, os agradecimentos). Não gastou um tostão em seu proveito,
ainda que passasse necessidades. E esta? O Sete estava
siderado: um ladrão generoso (à força, é certo) e um homicídio impossível. O
convencimento dominava-o, quando saiu do Laboratório. Comunicaram-lhe, ainda,
que a P.S.P. tinha encontrado uma montra, do bairro onde se dera o caso,
partida com um tiro, disparado de muito perto. Não roubaram nada, mas a bala
foi disparada pela mesma arma que matou Tó Dores. Tomou uma decisão.
Animou-se. Foi ao parque só para espreitar o sítio onde, tinha a certeza,
fora enterrado o dinheiro. Depois, iria procurar o polícia que o ajudara a
abrir a porta do morto, para lhe pedir colaboração noutra diligência. A
seguir, estava seguro, daria o caso como resolvido… Afinal, o Sete é sempre o
Sete!!! Quais as conclusões do
leitor? Não se esqueça de colocar todas as peças do puzzle. |
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© DANIEL FALCÃO |
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