Autor

M. Constantino

 

Data

15 de Dezembro de 2009

 

Secção

Mundo dos Passatempos [92]

 

Competição

Torneio A. Raposo

Problema nº 5

 

Publicação

O Almeirinense

 

 

UM, DOIS, TRÊS… E ERA UMA VEZ

M. Constantino

 

Ao longo da existência humana, milhares de milhares de palavras têm sido usadas sobre o crime. Estudos, relatos, ficção. Criaram-se ciências e aperfeiçoaram-se técnicas, condicionou-se o indivíduo e agravaram-se penas. Não obstante, o crime pulula. Ignora prevenções e repressões, desafia os próprios medos, se é que os tem. Nada o detém.

Esta é a história dos ASA, sigla que encerra três nomes próprios, três criminosos. Conheceram-se na prisão – Sérgio, a força bruta, 1,80 metros de altura, ombros largos, sólidos, músculos a revelarem força, cicatriz no rosto, estigmas de cortes nos braços, olhar de aço. Ninguém ousava enfrentá-lo. Dois anos de prisão por homicídio involuntário da namorada; o juiz teve em conta os antecedentes. Aleixo, o contraste de Sérgio, mais alto 10 centímetros, delgado, pálido, olhos furtivos por detrás dos óculos graduados não parecia perigoso. Todavia, amador precoce da química, salvara-se por milagre da explosão que destruíra o laboratório escolar e que ele próprio provocara. Dezoito meses, por posse, elaboração e venda de drogas psicotrópicas. Escolhera Sérgio como companhia. O terceiro membro do trio, Alcino, não mais de 1,70 de altura, cara de menino, alegre, condenado por aliciar e recrutar sexo de menores. Rapaz bonito, recebia assobios dos garanhões como se dirigidos a uma mulher. Um dia, desfez todos os equívocos: revelara-se um exímio perito em artes marciais e outros tipos de luta pouco inocentes. Seis ou sete valentões jaziam por terra e, quando Sérgio ia intervir, a seu lado, a matilha afastou-se, de cabeça baixa. O moço seguiu Aleixo e Sérgio sem prévia consulta. Num universo em que é vulgar a traição, a revolta e a exteriorização dos instintos mais malévolos, o ambiente começou a mudar. Algumas, poucas, reacções foram prontamente eliminadas. Tudo e todos dependiam da ASA, com evidente complacência dos guardas. Um prisioneiro queria uma testemunha, dinheiro e arranjava-se. Queria telefonar, o único telefone fora do alcance dos guardas estava invisível nas mãos dos ASA. Planos de fuga concretizados, frustrados quando era suposto serem do desconhecimento total do trio, ajustes dentro e fora das grades, eram obra dos odiados e temidos ASA ou de alguém por eles.

O tempo passa. Um ano depois de plena liberdade, o trio não existe, na aparência. A cirurgia plástica, a arte do disfarce, as influências e cumplicidades operam milagres, quando há dinheiro. Dois eram proprietários de clubes insuspeitos, de alta categoria, bem frequentados, que disfarçavam uma rede de prostituição, dos 15 aos 18 anos, nenhuma de raça latina, geridos por especialistas asiáticos que desconheciam os proprietários. Outro, uma casa de jogos de fortuna, jamais licenciada mas funcionando. Um laboratório de cariz inócuo distribuía droga. Frutuosos filões. Estabeleceram entre si a regra de que o último a sobreviver recebia todas as existências. Uma espécie de desafio ao destino, convenhamos. Mais, concordaram na aquisição de uma grande propriedade para a construção de um edifício de três andares, um novo clube com piscinas, campo de golfe, ténis e outros fins; algo de selecto, por isso. Sérgio, disfarçado de “investidor estrangeiro”, tomou conta da obra que só foi mostrada aos outros quando o edifício de duzentos e cinquenta quartos estava pronto, faltando apenas mobílias e obras exteriores em fase de finalização. No fim-de-semana, as obras foram suspensas e os operários dispensados por dois dias, para visita dos “sócios estrangeiros”.

Em veículos próprios, seguiram Sérgio até ao largo do futuro clube, atravessaram o cimento húmido e estacionaram no gigantesco parque de estacionamento. Atravessaram por um passeio empedrado, que impedia o trânsito para as traseiras. Sérgio puxou das chaves e abriu a porta, com uma vénia. A sala de recepção era ampla, com portas para o restaurante à direita, bar e sala de leitura à esquerda.

A visita ao interior levou cerca de três horas. Faltava o exterior. Alguém lembrou que precisavam de almoçar. Não seria arriscado saírem e voltar depois? Sérgio lembrou um restaurante na estrada das traseiras. Convidou Alcino e atirou com as chaves da porta principal para Aleixo, recomendando: – Não abras a desconhecidos! Seguiram pela traseira do prédio, entre as piscinas, entraram na floresta por um carreiro, até aos campos de ténis, delimitado por uma estreita orla de cimento. Alcino, que se adiantara, ouviu um estampido surdo, voltou-se e viu Sérgio caído, a apertar o tornozelo com o lenço ensanguentado, exclamando: Deita-te, rápido, fui atingido!

Alcino deixou-se cair. Depois, procurou chegar junto do ferido, que o deteve: – Telefona ao Dr. Amaro; ele sabe o caminho! Pasmosamente, não traziam telemóveis! Sérgio, gemendo, disse-lhe para voltar ao prédio. Assim fez. Hesitou ao deparar com a bifurcação de carreiros com que não reparara antes. – É o da direita, gritou o outro. Correndo doidamente na floresta cerrada, perdeu-se. Quase uma hora depois de vãs tentativas, deparou com um terreno irregular, assinalado como campo de golpe. Parou à escuta, ouvia veículos. Seguiu. Encontrou o desvio entre a estrada principal e a do futuro clube. Um casal facultou-lhe o telemóvel. Pouco menos de uma hora, surgiu o médico e chegaram junto de Sérgio. Demasiado tarde: as mãos e a perna ferida estavam repletas de sangue, estando esta amarrada pela gravata, em jeito de torniquete. A hemorragia matara-o.

A preocupação era evidente. O médico, conhecendo bem aquele local, levou Alcino até ao edifício. Bateram à porta, chamaram; ninguém respondeu. Nenhuma porta ou janela estava aberta. Voltaram a bater. Teria Aleixo adoecido, já que o carro estava no lugar? De comum acordo, impeliram uma trave e arrombaram a porta. Esperava-os o inesperado: os sapatos 45, de Aleixo, salpicados de cimento, formavam um V; não um V de vitória, mas um V de vencido… um tiro mortal no peito! O médico não via alternativa – tinha de chamar a polícia.

Alcino concordou mas, enquanto o Dr. Amaro dava explicações, agarrado ao telemóvel, dissimuladamente, meteu-se no carro, torceu, rodou a ignição e… uma explosão brutal pulverizou veículo e condutor…

Um, dois, três… e era uma vez!

Carros da polícia, ambulâncias, um magote de investigadores não se fizeram esperar. Começaram por identificar as vítimas, que não traziam documentos. Nos carros intactos, acharam documentos falsos e disfarces. Só pelas impressões digitais os Serviços Centrais, com demora, descobriram que eram os três cadastrados. Nas minuciosas buscas ao prédio, não encontraram forma do assassino entrar ou sair; a porta arrombada estava fechada à chave e as três chaves que lhe pertenciam jaziam em cima da bancada, com os telemóveis. Nunca esteve em causa o suicídio, dada a ausência de vestígios que o justificassem. Autópsias: a bala que feriu Sérgio entrou pela parte interior externa da coxa, cortou a artéria femoral, saindo um pouco abaixo, sem tocar o osso, caindo perto do corpo; hemorragia, supressão de circulação sanguínea, síncope. O projéctil que matou Aleixo destroçou a veia posterior do ventrículo esquerdo, penetrando profundamente no coração; saiu pelas costas e cravou-se num escadote. A balística apurou que os dois projécteis, de calibre 7,65 foram disparados pela mesma arma: um revólver curto de seis tiros, dois detonados, encontrado numa vala, a seis metros do corpo de Sérgio, enrolado num cheiroso lenço, saturado, segundo o laboratório, de fucsina e álcool. Num monte de ferramentas e luvas dos operários, encontrava-se uma chave da porta arrombada, com uma etiqueta de papelão, sem impressões digitais. O laboratório científico concluiu que a bomba que matou Alcino era potente bastante para não deixar indícios do seu fabrico.

Utilizando os vários dados como se fossem cacos dispersos de um valioso prato de porcelana, os quais o artista, pacientemente, vai colando, caco a caco, no lugar próprio, até o reconstruir, os investigadores vasculharam todo o trama e desvendaram o denso mistério.

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO