Autor Data 9 de Novembro de 2014 Secção Policiário [1214] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2014 Prova nº 10 (Parte II) Publicação Público |
A CULPA É DA MAÇÃ M. Constantino Eva,
a bíblica mãe de todas as mulheres do planeta Terra, ao convencer o frouxo e
imprevidente Adão a compartilhar consigo a maçã da árvore proibida, não só
sepultou a inocência humana como originou a perda do único paraíso terreal.
Daí, provado o deleitoso sabor da “fruta”, jamais parou… pais, seus filhos,
filhos dos filhos… enquanto o gasto e “chifrudo” Adão, a braços com a falta
de uma costela, mirrado pela artrite imposta pelos anos, esconde as exaustas
vergonhas com uma parra, ela serpenteava, nua de corpo e de pudor… Milénios
sucedem-se a milénios. Ao longo de muitas vidas, gerações de gerações, Adões
e Evas acusam a mesma demanda… E
a culpa é da maçã! Entre
o bem, o mau, o execrável, vive-se da “fruta”, mata-se e morre-se pela
“fruta”. Um anelo tentante alicia milhões de Evas.
Entretanto, aparece sempre um Adão com jeito especial para lidar com o ardil
da serpente, o feitiço de engodo… Muitas
Evas, menos cuidadas, ovelhas tresmalhadas aos
olhos do lobo mau – de preferência as mais abonadas – nutriam-lhe a
voracidade. Viera
de longe, Nada o ligava à remota paisagem. Ao longo de muitas vidas criadas,
correspondentes a outros horizontes, deixava um rol avantajado de Evas endinheiradas, adúlteras reduzidas à penúria pela
chantagem, suicídios estranhos, desaparecimentos misteriosos sem explicação.
Não receava os maridos, irmãos ou familiares, certo que estes temiam pela sua
reputação, já que as investigações policiais raramente lhe passavam perto. Dizia-se
Alberto du Buiãs, de
ascendência francesa, menos de quarenta anos de idade, esbelto e atraente,
olhes azuis (no presente), moreno de dentes brancos e sorriso demolidor. Frequentava
o casino local, onde se fazia notar pela indiferença pelas perdas,
ressarcidos os ganhos resultantes do conhecimento e companhia de belíssimas
mulheres. Parece não ter tido dificuldades em se introduzir no clube
desportivo da “alta-roda”, mercê da descontraída posição social – o título de
barão – e a atraente audácia. Ali se tornou conhecido e companheiro assíduo de
Glória e Dina, duas amigas de infância, frequentaram a mesma escola
particular e moravam na mesma rua da zona elegante da cidade. As raparigas
estavam encantadas, apaixonadas, todavia nunca discutiam entre si as suas
intimidades e emoções. Glória,
de 26 anos, loura, delgada de cintura e seios proeminentes, ousados,
divorciada recente, recebia uma grossa mesada e adquirira 4 milhões, de
indemnização, para calar o escândalo de ter encontrado o ex-marido, político
influente, na cama, com uma colegial de 14 anos. Dina,
mais alta que a amiga, igualmente esbelta, belíssima morena de 29 anos, viúva
de um industrial vítima de uma competição automóvel, herdara um negócio
orçado em quinze milhões, a par de acções,
obrigações e títulos vários, valiosos. Não
tinham filhos ou outros familiares, excepto um vago
irmão desta última, de paradeiro desconhecido. Ambas
desportivas; para além do treino de manutenção, Glória era uma excelente
atiradora com qualquer arma, Dina destacava-se na luta e defesa pessoal. Tudo
isto era do conhecimento do “barão” que, racionalmente, cortejava ambas, sem
se decidir. Inesperadamente, nos primeiros dias da semana, Glória não
aparecera no seu clube, o seu veículo desportivo foi assinalado na cidade
vizinha. Quando voltou deu-se o contrário, foi Dina que não apareceu.
Ninguém, nem elas, comentaram o significado das ausências. Tudo voltou à
normalidade. Alberto
comprou duas lindas salvas de prata iguais. Levou uma a Dina; deixou-a sobra
a mesa da sala com uma pirâmide de maçãs, que ele próprio compôs. Procedeu de
igual modo com Glória. Sabia que apreciavam. Nessa tarde, Dina visitou a
amiga e, feliz, contou que ela e Alberto aguardavam um navio de cruzeiro para
partirem numa volta ao mundo e casariam a bordo. Não esperava a reacção de Glória: -
Oh, não! Isso é impossível! Não pode ser… negociei… fiz um acordo… vou ficar
sem nada… prefiro morrer! Apanhou
uma arma da estante. Dina viu o dedo puxar o cão e a trava de segurança; a
arma dirigir-se para o peito, saltou levando a mão para o alto. A arma caiu
no chão e disparou-se, atingindo Glória. Foi este o depoimento que
telefonicamente prestou à judiciária e ficou gravado. Telefonou a Alberto. Quando
este ainda estava à porta tentando acalmá-la, chegaram os inspectores
Mateus e Elias. Entraram na sala. Este começou por fotografar tudo, enquanto
Mateus se debruçava sobre o corpo estendido no chão, meio de lado. Notou o
buraco de entrada da bala um pouco acima do mamilo esquerdo e o de saída no
lado oposto, onde caíra sobre um ligeiro charco de sangue. A arma, perto dos
pés, foi levantada com um lápis delgado enfiado no cano, depois de desenhado
o contorno no chão; viu que estava carregada e voltou a colocá-la no lugar.
Foi junto à estante, perto onde se encontravam armas de todas as espécies,
entre as de duelo e defesa pessoal, todas carregadas e com gatilhos muito
sensíveis, próprios de um atirador experiente. Ouviu o depoimento de Dina,
que coincidiu com o registado na Polícia, enquanto Alberto, parecendo mostrar
forte emoção, sentou-se tapando os olhos com as mãos. Dina andava de um lado
para o outro, como atordoada. Ao passar pela pirâmide de maçãs em cima da
mesa, pegou na de cima e lamentou: -
Querida amiga, nem provou as maçãs de Alberto… Mordeu
a maçã e começou a comê-la… de repente soltou um grito estridente, levou a
mão à garganta, a respiração tornou-se estertorosa, deu um passo e caiu com
convulsões intensas. Alberto ouviu o grito, viu o pequeno pedaço de maçã na
mão da moça e gritou: -
Engasgou-se… engasgou-se! Correu
para ajudar mas Mateus adiantou-se; conseguiu abrir a boca de Dina, mas não
viu o pedaço de maçã e sentiu o cheiro de amêndoas amargas. O rosto da vítima
tornou-se violáceo… deu um suspiro profundo… o último. Procurou sinais de
vida, não os encontrou. -
Está morta! Anunciou. -
A culpa foi da maçã!... Fiquei sem uma boa amiga e agora, sem a minha noiva!
Tenho que sair daqui, preciso de ar! Posso sair, inspector?
-
Não, não pode. Precisamos do seu depoimento. E acrescentou, pegando no
telemóvel: E a porra do médico legista que não
chega! Deve estar a jogar às cartas com os do laboratório… É
a vez dos leitores. Face ao exposto, quais as conclusões a tirar? 1
– Um homicida? 2
– Dois homicidas? 3
– Um suicídio? 4
– Dois acidentes? |
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© DANIEL FALCÃO |
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