Autor Data 24 de Fevereiro de 2002 Secção Policiário [554] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2001/2002 Prova nº 7 Publicação Público |
O OCUPANTE DO QUARTO 205 Natércia Leite Preliminares.
O ambiente. A personagem fulcral: Duarte. Naquele dia sombrio e
invernoso já a Alice passara algumas vezes nos corredores do segundo piso.
Desempenhava as suas funções sem enfado e uma tanto automaticamente. Pessoas
iam e vinham. Ouviam-se vozes dispersas e passos perdiam-se nas espessas
alcatifas. A Alice parou em frente do
205. O corredor estava vazio e a curiosidade era incontrolável… À porta
estava um par de sapatos pretos e na maçaneta da porta colocado um dístico:
NÃO INCOMODE. Pouco passava das vinte e
uma horas. Por momentos encostou o
ouvido na madeira da porta. Nada ouviu. Não devia meter-se no pelouro da
Carlota, que era quem atendia o ocupante do 205: o Duarte. Este tinha uma
maneira de ser muito peculiar e era muito cioso da sua privacidade. Por vezes, madrugada bem
alta, tinha a Carlota de o ajudar a deitar-se. Bebia
pouco, suportando mal o álcool e entusiasmava-se até à exaustão, estando horas
seguidas ao piano, improvisando, perdida a noção do tempo. As suas actuações eram fabulosas e a voz, grave e melodiosa. Teria o dístico ficado
esquecido? E os sapatos?... Parecia que ninguém
notara ainda a ausência do artista… Ou não seria assim? Atrevida, bateu com os nós
dos dedos. Silêncio. A Alice esteve quase, quase, a experimentar a maçaneta.
Resolveu foi, sem alardes, chamara a Carlota. O Duarte era bastante distraído
com as chaves, devido à mudança de fatos. Ora a porta estava no trinco, ora chaveada.
O dístico tornava-se importante, pois dormia de dia. Sob o aspecto
de hotel de categoria – esmerado serviço de quartos e restaurante, os lucros
mais chorudos provinham da cave à prova de som, conhecida dos frequentadores
por “Gaiola Dourada”, onde o jogo era levado muito a sério. O “Canário”, esse
era o Duarte, Alex de nome artístico. A natureza dotara-o de atributos que
agradavam a todos. Diziam-no femeeiro, mas era inexacto.
Não esboça gesto ou palavra para seduzir quem quer que fosse. A sedução era ELE!
Atraente, desprendido e simpático, lidava com as mulheres com naturalidade.
No entanto, achava-as atrevidas e por vezes um tanto loucas nos seus
arrebatamentos. Não tinha consciência do seu magnetismo pessoal. Acreditava
que atraía pelos seus méritos de pianista e vocalista. Solange alternava com ele
para descansos breves. Era o toque imprescindível da feminilidade. Claro que, subjacente,
havia um caudal de invejas, ciúmes e animosidades de toda a espécie. O
quarto 205. A ocorrência. O alarme. A morte A Alice trouxe a Carlota,
já alertada. A essa hora já o Duarte costumava estar lá em baixo, jantando e
preparando-se para a primeira actuação. Poderia
estar ainda a dormir, é certo… Decidida, a Carlota rodou
com força a maçaneta: a porta estava fechada à chave! A Alice bem viu como se
franziram os sobrolhos da Carlota que, por instantes, se quedou cismática. Dera-lhe ordem de não sair
dali, pois ia, numa corrida, buscar a outra chave que estava na recepção. Por certo voou! Em poucos minutos estava a
procurar meter a chave na fechadura, o que conseguiu, abrindo de imediato a
porta. Estava lá dentro uma luz difusa… No pequeno vestíbulo, à
esquerda, ficava a casa de banho. Em frente, o quarto. O silêncio era pesado.
Carlota e Alice entraram e acenderam as luzes do vestíbulo e do quarto.
Descreveriam mais tarde quanto se lhes deparou: 1 – A janela, de dois
batentes, estava fechada, os cortinados leves e brancos corridos e fechados,
unindo-se ao centro os reposteiros abertos; 2 – O Alex Duarte Canário
estava na cama, deitado de costas, esticado; 3 – A roupa da cama tapava
o corpo até ao pescoço e a dobra branca do lençol estava direita sobre a
colcha de ramagens; 4 – O Duarte, que costumava
dormir sem almofada, tinha os olhos fechados e parecia ainda dormir; não fora
a grande palidez do rosto e um acentuado ricto de dor; 5 – Tinha a cabeça descaída
para a esquerda e viram no ouvido direito um leve fio de sangue escorrendo ao
longo da face… Entretanto, pelo telefone,
Carlota pedira socorro. Juraram mais tarde que apenas tinham aberto a porta e
acendido as luzes, não tendo tocado em nada, como o frouxo do gerente lhes
vociferara pelo telefone, até ir ter com elas. Quando chegou viu tanto como
as jovens. O melhor mesmo era chamar o patrão, dono daquele mundo de jogo e
emoções fortes… Remetia assim toda a responsabilidade para os ombros do
outro, esquivando-se a tão desgraçada ocorrência. Motivos? Esses não
faltariam. O Duarte era jogador no pano verde e na vida. Conseguia atear
paixões de diferentes tipos, tendo criado à sua volta um denso clima.
Verdade, verdade é que o Duarte era vítima sob diversos prismas. Factos
concretos. Pormenores O Duarte não costumava
dormir com almofada. Mas estava ali uma, atirada ao acaso, amarrotada,
complemento talvez da roupa da cama, num dos lados os bordos chamuscados, no outro ténues vestígios de sangue. As chaves do quarto
205 estavam sobre a mesa-de-cabeceira. O “smoking” amarrotado fora
posto num cabide alto, de madeira, perto da janela. A camisa branca por cima
e duas meias pretas no chão. O roupeiro de parede, uma cadeira, “maple”, etc., nada traziam de novo ao caso. Havia também
uma mesa rectangular com revistas espalhadas por
cima, onde Alex comia. A casa de banho estava impecável, brilhante de
limpeza. Na véspera, o Duarte
recolhera-se tardíssimo, vacilante e de péssimo humor. Tivera de ser ajudado
para chegar ao 205, mas pusera toda a gente a andar, fechando a porta com
estrondo. Já o tinham ameaçado várias
vezes, a ponto de não ligar. E relevava… a vida tornava-se num renhido jogo,
no qual todos queriam ganhar! Mas uma arma carregada (como se verificou)
apontada à sua cabeça pela histérica mulher do gerente, isso ultrapassava as
marcas! Os hábitos do Duarte, como
Alex, variavam pouco. Recolhia-se manhã alta, sapatos no corredor e dístico
na maçaneta da porta. Despia-se de qualquer maneira, fechava os reposteiros e
o sono envolvia-o logo. Quando acordava, tocava três vezes para chamar
Carlota. Ela vinha com a chave (podia a porta estar ou não só no trinco, mas
sabia que ele tinha o cuidado, no caso de se fechar à chave, de não a deixar
na fechadura). Após chamar a jovem, já ela trazia, como usualmente, um copo
de água com uma aspirina. Depois o Duarte pedia uma refeição leve. Saísse ou
não, já tomava o jantar lá em baixo, antes da primeira actuação. Quando chegava a Carlota
com o tabuleiro, já ele tinha tomado banho, feito a barba, estando de roupão
vestido. Esse roupão que estava ali, no fundo da cama. Quanto aos
reposteiros, abria-os ela, se estavam fechados, ou o Duarte ao levantar-se,
para entrar a luz. Naquela fatídica manhã,
sentara-se à mesa a comer o que pedira: sumo de laranja, ovos mexidos com
presunto, torradas, compota e um café forte. Comera devagar e calado,
enquanto ela fazia a cama, trocava a roupa e lavava a casa de banho.
Levantara-se depois o Duarte, dizendo-lhe que ia dormir um pouco mais. Apressara-se ela a dar um
jeito aqui e ali, levar a roupa que mudou e o tabuleiro. E fazer o que ele
pedira: pôr os sapatos pretos lá fora e o dístico. A última coisa que fizera
fora correr os cortinados e fechar os reposteiros. Lembrava-se de ter deixado
a porta no trinco. Espanto. Surpresa.
Incredulidade. Ao levantarem a roupa da
cama, no destapar do corpo, depararam com algo inesperado! Toalhas turcas
brancas estavam dobradas sobre o ventre (como se fossem compressas). Via-se
uma mancha alastrada de sangue, no cimo dos turcos e o lençol de cima estava
manchado. As toalhas estavam ensopadas, rente ao corpo. Um objecto cortante tinha penetrado o ventre do pianista. Perante o horror do que se
via, o dono do hotel chamou imediatamente a polícia, tendo o caso ficado
entregue à secção de homicídios. Seguiram-se os trâmites
habituais nestes casos e tiraram-se conclusões: 1 – Não foram encontradas
as armas do crime. 2 – As impressões digitais
foram insuficientes para poderem tirar-se conclusões. 3 – O Duarte ingerira
sedativos, indutores do sono. 4 – Na autópsia, além do
pormenor citado anteriormente, perante os restos dos alimentos, o tempo de
digestão, a rigidez cadavérica, os ferimentos já mencionados, etc., apurou-se
mais ou menos a hora da morte. 5 – Às 15h30, um hóspede
identificado, enganando-se no caminho, reparou nos sapatos pretos e no
dístico à porta do 205. 6 – Antes das 17 horas, mas
depois das 16, houve quem visse Solange a falar e chorar à porta desse
quarto, o que evidentemente despertou a atenção, perante o insólito do facto. 7 – O gerente, procurando
falar com Alex sobre os acontecimentos da véspera, perguntara à Carlota pelo
Duarte, tendo ela respondido que devia estar ainda a dormir, tendo em conta a
noitada, o cansaço e o sono sempre em atraso. 8 – A mulher do gerente,
nessa noite, na maior exaltação, na sala de jogo, brigara com o pianista e
ameaçara-o de morte, chegando a apontar-lhe uma pequena arma. Gerara-se
confusão e o marido, ao tentar separá-la dos outros, ainda levara um valente
soco perdido, tendo-lhe partido os óculos. Pergunta-se: – O que provocou a morte do
Duarte? – Quem pretendeu matar o
Duarte? Fala-se em sapatos pretos,
roupas, chaves, horas. Na sua solução, não os esqueça. |
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© DANIEL FALCÃO |
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