Autor Data 1 de Fevereiro de 2009 Secção Competição Problema nº 6 Publicação O Almeirinense |
SONHO DESFEITO Nove Simas
de Oliveira reformara-se há três anos. De entre as diversas coisas que
sonhara fazer estava a catalogação da sua considerável biblioteca. Tendo
constatado ser difícil realizar tal tarefa sem a ajuda de outra pessoa,
contratou um estudante de dezanove anos, versado em informática, para o
período de 21 de Julho a 5 de Setembro de 2008. Era
viúvo e vivia sozinho no segundo andar esquerdo de um prédio de oito
habitações. Tinha uma empregada, a Sra. D. Joana Simões, que vinha todas as
manhãs, entre as 9 e as 12 horas, de segunda a sexta. Seu filho, não morando
longe, visitava-o mais frequentemente do que as duas filhas, que viviam
noutra cidade. Os três, assim como a empregada, tinham chaves das portas do
andar e da entrada do prédio. O estudante, de seu nome Nuno Costa, que
costumava aparecer por volta das 9h30, dispunha apenas do comando do portão
da garagem (onde se arranjara lugar para o seu pequeno descapotável dos anos
noventa) e de uma chave de acesso à garagem pelo elevador. Na
manhã cinzenta do dia 12 de Agosto, pelas 9h07, Jaime Gomes de Oliveira, com
a voz embargada, informou a polícia de que, momentos antes, a empregada de
seu pai lhe telefonara, assustadíssima, a comunicar que tinha encontrado o
patrão morto, com o pescoço todo ferido. Finalizou dizendo que pedira à D.
Joana para aguardar e não mexer em nada. O
Inspector J. Mamede chegou ao local da ocorrência
pelas 9h55. Numa sala com três estantes pejadas de livros, uma secretária e
uma mesa de trabalho, dois computadores e acessórios, denominada escritório,
cheirando em conformidade, mas com um enjoativo aroma de sangue à mistura,
encontrava-se, à secretária, o cadáver de Simas de Oliveira, recostado e
descaído na sua cadeira de braços, com um extenso ferimento na parte da
frente do pescoço, que vertera sangue para o casaco de pijama, o leve roupão,
o braço direito da cadeira e para o soalho. Havia, ainda, salpicos de sangue
na aba anterior da secretária e no exterior da gaveta mais baixa do conjunto
da direita. Nenhum
dos objectos cortantes existentes no escritório
mostrava sinais e condições de ter sido usado como instrumento de degolação.
A janela estava encostada. J. Mamede abriu-a e espreitou para fora, nada
tendo notado de especial. A
Sra. D. Joana, pessoa dos seus sessenta anos, de aspecto
cuidado mas com ar abalado, declarou: –
Abri a porta como de costume, rodando duas vezes a chave, e gritei para
dentro os bons-dias, a fim do Sr. Doutor saber que eu já tinha chegado. Não
ouvi resposta, mas também não estranhei, porque nem sempre a tinha à
primeira. Eram quase nove horas. Fui junto da casa de banho maior, bati e nada. Dirigi-me então para o escritório e dei com
aquele horror. Passou-me uma sombra pelos olhos e não sei como não caí.
Pensei, então, que o melhor seria telefonar ao Sr. Engenheiro… ao filho do
Sr. Doutor. Ele disse-me para não mexer em nada e aguardar. Com o medo, saí,
fechei a porta e esperei no patamar da escada. Gomes
de Oliveira, homem perto dos quarenta anos, bem parecido,
engravatado e com fato claro, afirmou: –
Como vos disse, soube desta desgraça pela D. Joana e, mal vos telefonei,
corri para aqui. Tinha saído de casa cerca das vinte para as oito, passei
pelo atelier, onde devo ter estado das oito às nove,
mais minuto menos minuto, e ia falar com um cliente a Torres Vedras. Ontem,
conversei com o meu pai, que estava muito entusiasmado com a catalogação dos
livros, embora um tanto desagradado com o trabalho do jovem. Falou-me outra
vez das jóias da minha mãe, que queria dividir
entre os filhos, e de outras peças valiosas que guardava no cofre, tais como
uma preciosa miniatura dos fins do século XVIII e duas colecções
de moedas, uma de ouro e outra de prata. Por isso, peço que verifiquem o
cofre. Ele está no escritório, escondido atrás de uma serigrafia de
Cargaleiro. O meu pai, não raro, abria-o, falava do conteúdo e deixava-o
aberto à vista de estranhos… Às
10h40, um agente anunciou a chegada de Nuno Costa, dizendo que o rapaz ficara
muito assarapantado ao dar com um polícia no patamar. Identificara-o e
deixara-o isolado na saleta, com a indicação de que seria contactado dentro
de momentos. Antes
de falar com o estudante, J. Mamede voltou a pedir informações à empregada.
Ela disse que sim senhor, que havia uma ampla arrecadação no piso mais alto,
onde o Sr. Doutor também tinha livros, cuja chave estava à entrada, junto com
as chaves da porta da casa e do prédio, dentro de uma taça de estanho, que
mostrou ao Inspector. Asseverou que tinha saído de
casa pouco antes das oito e meia, direita para o trabalho, a pé, como de
costume, mas, nesse dia, acompanhada, em grande parte do caminho, pela sua neta
mais velha. Comunicou, ainda, que era normal encontrar o Sr. Doutor já
vestido e pronto, ou quase; que o estudante, às vezes, chegava bastante
depois das nove e meia e que o vira passar no descapotável, em sentido
contrário, com ar muito desportivo, camisa toda aberta, quando ela vinha para
o trabalho, nessa manhã. Ao filho da vítima também foram pedidos
esclarecimentos adicionais. Não decorara o segredo do cofre, mas sabia que
estava guardado numa folha, junto com outras senhas, em escrita cifrada, que
o pai dizia ser criptografia de meninos. Afirmou que o contrato com Nuno
Costa era de vinte horas semanais, que o jovem trabalhava sobretudo da parte
da manhã, e que, em sua opinião, o pai lhe dera demasiada liberdade. Não
se encontrou a folha onde Simas de Oliveira teria criptografado o segredo do
cofre e outras palavras passe. O filho ficou de disponibilizar a sua cópia
que, segundo afirmou, nunca tentou decifrar. Nuno
Costa era um rapaz de elevada estatura, pele bronzeada, muito composto mas um
tanto afectado. Vestia um pólo
azul e umas calças creme e exalava um perfume agradável. Sobre o que havia
feito nessa manhã, disse ao Inspector que combinara
com o Dr. Oliveira chegar mais tarde, por razões pessoais e também para ter
tempo de comprar “memória” extra e papel para o trabalho em curso. Mostrou um
recibo da loja de informática, que registava as 10h11 para o pagamento do
material que trazia consigo. Esclareceu que, não tendo um horário rígido,
preferia ocupar as manhãs. Interrogado sobre o que sabia das relações do Dr.
Oliveira com outras pessoas, alegou desconhecer-lhe inimigos, que só tinha a
dizer bem dele e que jamais lhe passaria pela cabeça que o liquidassem de
maneira tão bárbara. Entretanto,
J. Mamede recebeu a cópia das senhas criptografadas. Eis um excerto do
conjunto: CMIAADCFEOBNÇOOOR:
OTZRNVSITEIOEOOEESRS Aberto
o cofre, com base nesta informação, constatou-se que, de grande valor, só lá
estava a miniatura do século XVIII. Gomes de Oliveira orçou o possível roubo
em mais de cinquenta mil euros. Por outro lado, verificou-se, via internet,
que as contas bancárias do pai não tinham sido tocadas naquele dia nem de
forma anormal nas quatro semanas anteriores. À primeira vista, só o cofre
teria sido assaltado. O
médico legista concluiu que o esfaqueamento – dois profundos golpes – bem
como a morte quase imediata, deverão ter ocorrido entre as 8 e as 8h45. J.
Mamede confidenciou ao seu ajudante Artur dos Santos que, apesar de haver
ainda muita coisa para verificar e comprovar, já se vislumbrava o que
acontecera. O
que é que se podia entrever, como e porquê? |
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© DANIEL FALCÃO |
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