Autor Data 8 de Janeiro de 2006 Secção Policiário [756] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2005/2006 Prova nº 2 Publicação Público |
O CANTAR MARAVILHOSO DO TENTILHÃO Onaírda Naquela manhã de Maio de um
ano extraordinariamente afectado por uma seca
extrema, que se iria agravar mais tarde com a previsão de que o défice iria
chegar aos 6,8%, o Inspector António Garçôa (o Teórico) entrou no seu gabinete e qual não foi
o seu espanto ao deparar com o seu colega Tempicos
(ainda em recuperação de amores mal-sucedidos com a
Nelinha) vestido a rigor e tendo nas mãos um ramo de flores, uma mistura de
papoilas, verduras e espigas. Garçôa riu-se, porque
conhecia o espírito marialva de Tempicos para
agradar ao belo sexo e a sua presença no seu gabinete justificava-se, porque
tinha sido admitida uma nova agente de 3ª (muito apresentável e bem
classificada no curso) e que fora adstrita à sua secção. A Tempicos já lhe tinha dado o cheiro e estava a lançar as
redes. Garçôa, meio a sério e meio a brincar,
disse-lhe que ao menos podia gastar mais uns cobres e comprar um ramo mais
jeitoso. O detective mulherengo arranjou uma
desculpa esfarrapada, porque a porta das instalações da polícia estava pejada
de vendedoras, num dia a preceito. Cheio de boas intenções e para ajudar as
mulheres, lá comprou um ramo. Tempicos, depois de
cansar os olhos na figura agradável da nova agente (Cristina, refira-se o
nome), saiu, não sem antes avisar o amigo que telefonaria mais tarde. Garçôa, que estava de piquete, foi chamado às 17h00 para
tomar conta de um crime violento, ocorrido num parque de estacionamento à
superfície, situado na zona do Restelo. O Teórico foi confrontado
com uma morte executada com extrema violência por “profissionais“. Daniel
Morgado era um empresário de sucesso do ramo imobiliário em Cascais, mas com
algumas habilidades à mistura, que lhe iam granjeando fortuna, mas também
ressentimentos, ódios e desejos de vingança por parte de alguns concorrentes.
Foi ele quem apareceu morto no interior do seu automóvel, apresentando um
profundo e extenso golpe na garganta, direccionado
da direita para a esquerda e que quase o degolou. Tinha tido morte
praticamente imediata, tal a precisão do golpe. O móbil do crime não fora o
roubo, pois não foram subtraídos quaisquer valores da viatura e a própria
carteira de Daniel, que estava meio à vista num dos bolsos do casaco, estava
intacta e com 800 euros. Garçôa concluiu que a
morte do empresário tinha sido o objectivo único
daquele golpe de mão! Havia uma testemunha
importante e que se pôs à disposição do Teórico. Tratava-se de um empregado
de uma cervejaria próxima, situada a cerca de 100 metros do local do crime.
Disse que nessa tarde entraram dois indivíduos, um de pele branca e o outro
de raça negra, com ligeiro sotaque afrancesado, que nunca os tinha visto por
aqueles lados, que se sentaram em dois bancos do balcão e de onde podiam ver
distintamente a rua. Pediram dois copos de cerveja, mais tarde repetiram e
ali permaneceram duas horas praticamente sem conversar, mas sempre olhando
para o exterior, o que fez desconfiar o empregado. Perto das 16h30, saíram
repentinamente, deixando os copos meios de bebida e passaram para o outro
lado do passeio. Como não tinham ainda pago a despesa, o empregado veio até
fora do estabelecimento e gritando, chamou a atenção para o facto e de
imediato o negro atirou para o chão uma nota de cinco dólares. O empregado,
que estava de luvas por estar a lavar copos e chávenas, não se fez rogado:
atravessou a rua e apanhou a nota, mas teve tempo de reparar que os dois
homens seguiam outro bem vestido e que iam todos na direcção
do parque de estacionamento. Já com a visão perturbada por uma árvore, viu de
relance que o homem bem vestido entrou no seu automóvel e o outro de pele
branca tentou impedi-lo de fechar a porta ou pelo menos dificultou a entrada.
Mas como estavam a chamá-lo da cervejaria voltou para trás e não pensou mais
no que viu. Quando soube do crime, relacionou-o com a presença dos dois
desconhecidos e dera conhecimento à Policia. Com a excitação do momento, não
lavara os copos que ainda estavam em cima do balcão, nem guardara a nota na
gaveta da máquina registadora. O apoio logístico de Garçôa funcionou, traduzido com a recolha de indícios e a
presença do médico legista. A conclusão do que viu permitiu ao Teórico
confirmar que estava em presença de uma dupla especialista neste género de
golpes, de certeza que já tinham cadastro e que actuaram
às ordens de um mandante. Diligências efectuadas no dia seguinte permitiram que, no fim do dia,
o inspector tivesse a investigação alinhavada.
Tinha obtido do juiz de instrução um mandado de detenção para os dois
suspeitos e havia que os interrogar no dia seguinte, sábado. Tratava-se de
Arnaldo Camarão, que morava na zona da Ericeira, e de Mifiná
Siké, de origem africana, que residia na zona
oriental da capital e estava em Portugal havia dez anos, devidadamente
legalizado. Quando Garçôa
interrogou Arnaldo Camarão, este ainda não sabia para o que fora chamado,
ficando na expectativa – talvez fosse o não cumprimento da apresentação de
uma “condicional”. Devido à forma inteligente e matreira como começou o
interrogatório, deu-lhe para falar à vontade, para impressionar o Teórico.
Este, de repente, disparou a pergunta inevitável: – Que é que você fez
durante todo o dia de anteontem? Arnaldo é apanhado de
surpresa mas respondeu com convicção. – Dormi toda a manhã e
levantei-me por volta da uma. Almocei uns restos do jantar da véspera e de
tarde fui até ao porto de pesca da Ericeira, onde estive entretido a ver a
grua a descer e içar barcos empenhados na pesca desportiva. Mas aproveitei a
ocasião e levei comigo um tentilhão numa gaiola, para o ir treinando a cantar
em andamento. Tenho um tentilhão novo, que canta grande quantidade de
cantigas, mas só em casa. As pessoas que me viam passar, não só admiravam o
cantar da ave, mas também o seu bico azul, sinal de que anda com o cio e que
o faz cantar lindamente nesta época da Primavera. Regressei a casa por volta
das 19h00 e já não saí! Garçôa não lhe perguntou mais nada mas
lembrou-se que por vezes ia à Ericeira aos domingos e gostava de ver a tal
grua no seu movimento de bota abaixo e levantamento de barcos desportivos. Mifiná Siké dava
claramente a ideia de ser esperto e operacional. Estava no mesmo estado de
Arnaldo quando começou a ser interrogado. Garçôa
fez-lhe a mesma pergunta e ele respondeu convictamente: – Nesse dia apeteceu-me ir
à pesca. Fui desatracar o meu barco à doca da Matinha pelas 9h00 e dirigi-me
para a outra margem perto do Samouco, onde apanhei minhocas suficientes para
um dia inteiro de pesca. Segui para o mar da Palha e por lá estive todo o dia
até às 18h00. Depois vim atracar o barco na doca e segui para casa. Já não
saí no resto do dia. Mas no dia seguinte também fui para a pesca, agora nas
valas das lezírias de Vila Franca, dado que é a altura ideal e permitida para
se apanharem bogas, carpas, barbos e achigãs. Como é seu hábito só ao
final do dia seguinte é que Tempicos se lembrou de
telefonar ao Teórico e perguntou-lhe se a nova agente estava a corresponder
às suas funções. Garçôa disse-lhe que ela tinha
passado todo o dia no laboratório da científica, aguardando resultados
urgentes e concretos. Tinha demonstrado grande paciência, o que era bom
sinal. Mas tudo foi frutuoso e correu bem e agora informava-o de que o
namorado da Cristina tinha vindo buscá-la e que o mesmo tinha dois metros de
altura e praticava karaté. Tempicos
pigarreou, tossiu e resmungou: – O Teórico até nem pode
acertar num alvo a cinco metros, mas que é certeiro a desmoralizar, lá isso
é!... Onaírda conhece o relatório elaborado pelo
Teórico e que permitiu que o caso fosse para tribunal. Mas como está obrigado
pelo segredo de justiça, que quer cumprir, deixa ao cuidado dos detectives do Policiário a elaboração do mesmo o mais
aproximado possível. |
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© DANIEL FALCÃO |
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