Autor Data 16 de Janeiro de 2005 Secção Policiário [705] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2004/2005 Prova nº 4 Publicação Público |
NO BRASIL, OLHANDO O MAR Paulo – Se você soubesse o que me
aconteceu caía já para o lado! Enquanto olhava o mar
atlântico da costa brasileira ia conversando com Faguenundes,
o meu interlocutor. – Veja bem cara! Já lá vão
mais de 30 anos aqui neste país, só para fugir de complicações. Acho que já
nem sei usar as palavras da minha terra. Já lá vão anos em demasia. Sabe que
eu era um polícia? E dos bons. Pertencia à Judiciária. A polícia que
investiga. Agora que me vê aqui, dá para acreditar? Compus os óculos de sol,
enquanto olhava o meu parceiro. – Foi essa minha profissão
que me perdeu. Para evitar a confusão, decidi vir para cá. Não que dê a minha
viagem por desperdiçada. Consegui aqui o que jamais conseguiria em Portugal
sendo policial toda a vida, lá estou eu a usar os vossos termos. Aqui pude
crescer. Vê os prédios desta rua? Foram quase todos construídos por mim.
Quando aqui cheguei custou a adaptar-me a este clima, mas logo me atirei ao
trabalho, e eu sou a prova que a vontade tudo consegue. Este prédio onde
estamos foi o primeiro que construí. Um ano depois de eu chegar, já cá estava
morando. – Vou contar-lhe como vim
aqui parar. Vejo seus olhos brilhando de curiosidade. Eu era um infiltrado.
Fui colocado dentro de um bando que traficava diamantes, para poder destruir
a quadrilha. O chefe, que curiosamente fora emigrante aqui no Brasil e por
isso tinha a alcunha de “brasileiro”, um homem gordo, seboso, demorou tempo a
ter confiança em mim, até que, depois de eu ter feito alguns bons trabalhos,
me colocou como seu guarda-costas. Apesar de ser o principal bando naquele
ramo de actividades, o chefe não vivia em Lisboa.
Vivia numa pequena vila de nome Vilar Formoso. Sabe porquê? Faguenundes acenou com a cabeça e eu continuei. – Ficava junto a Espanha, e
era através da fronteira, em viagens de comboio, que ele passava as pedrinhas
brilhantes para Antuérpia e Amesterdão, que são duas cidades fulcrais no
comércio de diamantes na Europa. Os portadores passavam a fronteira
caminhando, e do lado espanhol tomavam o trem. Como eu estava
lhe contando, promovido a dedo-duro, fui metido dentro do bando para
conseguir provas que o apanhasse em flagrante. Fui ganhando a confiança do
chefão, que era necessária para preparar o grande golpe. Mesmo assim acho que
nunca tive a sua total confiança. – Certa vez me pegou com
ele e partimos para capital, que como você sabe é Lisboa. Íamos buscar dois
grandes diamantes que tinham sido roubados três semanas antes. O ladrão
queria passá-los e o meu chefe tinha sido contactado. Como não tinha
disponível nenhum dos homens de confiança, decidiu avançar com os seus mais
de cem quilos e ser ele a recolher o produto. Chegámos já de noite e ficámos
alojados numa pensão perto da estação dos comboios, que se bem me lembro se
chamava Santa Apolónia. – No dia seguinte depois do
almoço, eram para aí três horas da tarde, um sol de Junho abrasador, o meu
chefe, soprando o seu peso debaixo de mais de trinta graus, e eu, fomos à
vivenda onde vivia o tipo que nos queria passar os diamantes. Naquele tempo,
no meu país, um homem tinha que andar sempre de casaco, pelo que já pode
imaginar o que se sofria ao sol. O meu interlocutor riu-se,
certamente lembrando-se de alguma das muitas anedotas sobre portugueses que
ele já me contara. – Eles já eram conhecidos,
percebi eu pela forma como se cumprimentaram. Eu fui apresentado, e não
gostei do olhar que vi os dois cruzarem. Li nos seus olhos que eu estava a
mais. Informado do meu prazer pela caça, o nosso anfitrião, disponibilizou-se
a mostrar-me alguns troféus que tinha nas muitas divisões da mansão que
habitava. Perguntou ao meu chefe se queria beber alguma coisa, e ele, que não
tocava em álcool, pediu uma água bem gelada. Fiquei sentado com o meu chefe,
debaixo de um guarda-sol do jardim, aguardando pela bebida refrescante que o
outro fora buscar. Assim que a água chegou, convidou-me então a ir visitar
com ele a casa. Enquanto deixei o meu chefe a ler uma revista de nome
“Flama”, veja bem que nunca mais esqueci, segui o dono da casa. – Levou-me de visita por
quase todos os compartimentos. Eram cabeças de animais africanos a
espreitarem-nos da parede, peles no chão, outras penduradas. Quase toda a
fauna de África estava dentro daquelas paredes. Mas o luxo não estava só na
casa. Via-se bem que os roubos eram um bom negócio. Olhe que naquele momento
me passou pela cabeça mudar de vida. Uma casa cheia de luxo; o meu anfitrião
a nadar em dinheiro; pela janela via o meu chefe refastelado a agitar os
cubos de gelo no fundo do copo cheio de água. Confesso que me tentei a ter
uma vida como a dele. Mas parei a tempo… nada paga uma consciência limpa e
tranquila. – Não percebi o que fomos
fazer naquela casa, nem para que me levou ele numa visita guiada. Assim que
chegámos cá fora outra vez, despedimo-nos e fomos embora. Não houve troca de
mercadoria. Fiz uma pausa, que o meu
companheiro não cortou. Continuei. – Ao fim da tarde
regressámos. Mais uma viagem de comboio, que se ia prolongar noite fora.
Escolhi um compartimento vazio, coloquei as duas malas sobre a grade por cima
do gordo e sentámo-nos. O ‘brasileiro’ ia sentado à
minha frente. Enquanto via pela janela a paisagem a aproximar-se, senti
vontade de lhe perguntar pelos diamantes. Mas eu não queria mostrar que
queria saber de mais, e mantive-me calado. Fizemos a viagem sempre
sozinhos. Já tínhamos mudado para locomotiva a diesel,
que comboio eléctrico era só até meio caminho,
quando eu me levantei para esticar as pernas e caminhar um pouco. Andava a
passear pelo corredor, quando ocorreu uma travagem violenta que quase me fez
cair. Quando recuperei, o comboio já estava parado. Espreitei pela janela,
mas a escuridão da noite não deixou ver grande coisa. Como visse gente
saindo, também fui. Um homem de bicicleta tinha sido apanhado. O cenário não
era o mais belo e regressei à carruagem. Não me esperava nada melhor. O
chefão estava recostado para trás no banco, numa posição de cabeça um pouco
estranha, e no chão estavam as duas malas. Depressa vi que ele tinha a coluna
partida, ou como se diz, ‘o pescoço partido’. Morrera. Levara com as malas na
cabeça. Sem dúvida que tivera morte imediata. O meu amigo Fanegundes abriu um pouco os olhos, mas foi só uma
manifestação emocional, não dizendo nada – Só lhe digo que, por
causa do homem da bicicleta e da morte do meu chefe, o trem só voltou a
arrancar já o sol nascia. Respirei fundo antes de
continuar. – Foi o princípio dos meus
problemas. Na polícia desconfiavam que eu não contava tudo e a quadrilha
queria saber dos diamantes, nos quais eu não pusera a vista em cima, nem
tinham vindo na viagem. Sem dizer nada a ninguém, comprei um bilhete para o
Rio de Janeiro e passado uns tempos acabei por vir parar aqui, um pouco mais
a norte. Não estava para os aturar. Nem a uns, nem a outros. Podia dizer que
foi um trem e uma bicicleta que me trouxeram aqui. Me atirei a construir
casas, arranjei família, e aqui estou, ex-polícia e brasileiro por adopção, clandestino por muitos anos. Mas com dinheiro
abrimos todas as portas, e consegui sempre construir. Não acha que fiz bem em
vir, fugindo das complicações? Caro leitor, com base nos
dados apresentados, continue o texto, escrevendo a parte II e dando uma
resposta à questão que o narrador coloca. |
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© DANIEL FALCÃO |
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