Autor Data 2 de Junho de 2013 Secção Policiário [1139] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2013 Prova nº 5 (Parte I) Publicação Público |
A ODISSEIA DE ÁLVARO DOMINGUES Paulo Algumas
gotas de chuva caíram da gabardina do Eugénio enquanto ele me apertava a mão
fortemente. –
Que tempo! Chega uma pessoa de Paris e depara-se-lhe uma borrasca destas. No
dia de hoje, apenas vejo uma vantagem nesta chuva. Evita que ande mais gente
na rua, com aquela estúpida tradição carnavalesca de atirar com ovos podres,
ou fazendo qualquer outra brincadeira desajustada. –
Entra, entra! Temos muito que conversar. Quatro anos sem nos vermos, é muito tempo. Quando me telefonaste a dizer que cá
estavas nem acreditei. Estou sozinho em casa. A Luísa foi com os miúdos
passar três dias a casa dos meus sogros. Eugénio
entrou, deixando-me na mão a gabardina, que eu pendurei num bengaleiro. Não
tardou muito que a conversa se encaminhasse para os assuntos proibidos: a ida
do Eugénio para França na tentativa de evitar males maiores, que poderiam ir
até à sua prisão; a despedida na Estação de Santa Apolónia, quatro anos
antes; a esperança que tudo acalmasse, que ninguém falasse demais, permitindo
o esquecimento dos factos, o que na verdade acontecera, e um regresso rápido;
a expectativa de fazer o doutoramento que lhe fora vedado na sua pátria; e a
esperança que os ventos mudassem de vez o rumo, levando a mordaça que a todos
calava. –
Deixemo-nos de assuntos tristes e falemos da tua vida em Paris. Há dois anos
as coisas estiveram beras por lá. –
Bem o podes dizer. A polícia a dar pancada e as manifestações a crescerem.
Foi uma loucura. Começou com os estudantes, mas depois alargou-se a outras
áreas da sociedade. Foi um mês de Maio completamente louco. Instintivamente
baixei a voz para dizer. –
Cá também tem havido problemas. Em Abril do ano passado houve uma bronca em
Coimbra. Numa sessão com o Ministro da Educação e o Presidente da Republica,
um estudante pediu para usar a palavra. Nem queiras saber no que aquilo deu. A
conversa continuou em redor de assuntos políticos até que: –
Já chega de assuntos sérios e diz-me o que te fez vir até minha casa. Ainda
não digeri o que me contaste pelo telefone. Eugénio
meteu a mão no bolso do casaco e desdobrou a folha que de lá retirou. –
Como já te tinha dito, o meu regresso tem a ver com a morte do meu tio
Firmino. Eu e os meus irmãos somos os herdeiros e na distribuição da herança
estão a aparecer problemas. Não sei se te lembras de quem era o meu tio
Firmino? Era aquele que parecia não bater bem da cabeça, afogado em papéis
velhos que ele chamava documentos. Claro que lá tem algumas coisas valiosas,
mas outras, são autêntico lixo. É de um desses papéis que eu te venho falar.
Os meus irmãos dizem que é o mais valioso mas eu penso que é uma burla. É
uma carta escrita por um Álvaro Domingues, datada de há 100 anos, que narra
uma travessia de África, desde Angola a Moçambique. A ser verdade tal facto,
alguma História teria de ser reescrita. Eles não me deixaram trazer o
documento, mas eu transcrevi algumas partes que queria que lesses. Claro que
modifiquei a grafia da época para a atual. Entregou-me
a folha que tinha na mão enquanto acrescentava. –
O papel de onde copiei o que aí está escrito aparentemente é muito antigo,
amarelado, com a tinta a ficar com uma tonalidade acastanhada. Por análise
visual simples nada nos faz detetar uma falsificação. Peguei
no papel que ele me estendeu, alisei melhor a folha, e vi algumas linhas
entre as aspas. “...agora
que estou nesta costa do oceano Indico, esperando pelo barco que me levará de
volta a casa dez anos após ter partido, posso finalmente erguer os olhos para
o alto e agradecer à Virgem a graça de ter intercedido por mim junto do Seu
filho...” “...tantos
meses, na solidão, orientado apenas pelas estrelas, e por Ela” ”...
Quando todos os carregadores me abandonaram, deixando-me apenas a roupa que
vestia, uma arma de fogo, uma faca e um pequeno caderno no bolso, foi a
Senhora de Fátima que me valeu e me guiou, afastando de mim as feras e os
selvagens que me poderiam atacar” “...para
escrever utilizei sucos de plantas e...” “...sempre
a clareza de ideias que me permitiu ir registando o que via, depois do
boicote que sofri na minha expedição” “...comendo
o que a mãe natureza me oferecia e pequenos animais que eu apanhava com as
mãos ou a faca...” “...de
noite ouvindo as feras, rezando e olhando o céu estrelado” "Encontrei
o caminho para o Oriente, chegando a este porto do Indico” “…o privilégio de observar os sete planetas, que vogavam na
abóboda azul que me cobria, e de fazer o desenho das constelações...” “...dar
a conhecer aos homens da ciência a posição dos planetas nas diferentes
constelações do hemisfério do Sul” “...esperar
uma recompensa de Sua Majestade, pelo engrandecimento que o meu feito faz da
nossa amada Pátria.” –
Não preciso de ler mais. É evidentemente uma falsificação. –
Também o penso – referiu o Eugénio. – Vou dizer-te o que me levou a formar
opinião sobre a falsidade do documento. Sem
dúvida que o leitor já se apercebeu que se está perante um documento falso. Explique
as razões. |
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© DANIEL FALCÃO |
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