Autor Data 13 de Novembro de 2005 Secção Policiário [748] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2005/2006 Prova nº 1 Publicação Público |
MENTIRAS Procurador Incógnito Já não via o pai há muitos
anos e este nunca demonstrara grande interesse no que se passava por aqueles
lados. Invariavelmente, vinha a argumentação do pai: “Não me importava muito
porque sabia que estavas em boas mãos com a tua mãe…” Não acreditava, mas o
que é que podia fazer? Crescera sem pai e sem o desejo muito evidente de o
vir a ter por perto. Podia dizer, mesmo, que lhe era indiferente. Só que,
depois de tantos anos, eis que ele aparecia na sua vida e, sinceramente, não
sabia como lidar com a situação. Ignorá-lo? Hostilizá-lo? A mãe lançara o aviso para
que não acreditasse em tudo o que ele dissesse, porque mentia com uma
facilidade impressionante e com a convicção própria de quem estava seguro do
que dizia… “Não chega olhá-lo nos
olhos porque até assim é capaz de mentir e jurar…” “Sabes, filho, a vida nem
sempre é como a queremos viver… Há momentos em que temos de tomar decisões e
abrir mão de muitas convicções… Também eu gostava de ter estado contigo e
acompanhar o teu crescimento, mas tive de ir para a América do Sul, por onde
andei anos a fio, em expedições, mas sempre contigo nos meus pensamentos… “Lembro-me de estar numa
véspera de Natal, algures pelo Chile a contemplar a Lua e, ao ver nela a tua
inicial, recordar os momentos que passei contigo, eras tu ainda um bebé… Dias
depois, em plena passagem de ano, naquela bola enorme, luminosa, revia a tua
cara bolachuda, redonda e sorridente… É mesmo isso, nunca te esqueci, só não
tinha muito tempo nem oportunidade para te escrever, entendes? Andei por
sítios nunca visitados por brancos, bem no centro da Amazónia, visitei tribos
desconhecidas até então e recordo em particular uma aldeia praticamente
inacessível, em que comi com o chefe da tribo, falei-lhe de muitas das coisas
que eles nunca viram e ouvi da sua boca muitas histórias sobre a sua vida,
família e tribo… Experiência única, ser o primeiro
ser exterior a falar com eles, já imaginaste? E outra vez em que me despedi
da vida porque me perdi e andei dias e dias sozinho por montes e vales nos
Andes, sem encontrar vivalma, caminhando de noite para me poder proteger do
sol e me orientar pela estrela polar, uma estrela que me parecia ter seis
pontas e que logo me recordava o teu nome, que era a minha única referência e
me serviu para encontrar uma aldeia mais a norte e ali encontrar assistência
e apoio… Também nessa altura me lembrei de ti e foste a razão da força que me
tirou de lá… Ainda estive à porta de uma estação de correios, na Bolívia, no
dia de um dos teus aniversários, decidido a enviar-te uma mensagem, um
telegrama, que telefone era coisa que por lá não havia, mas não pude
mandar-te nada porque estava fechada por ser feriado… É o que dá nascer no
dia da implantação da República. Eu bem tinha dito à tua mãe que era melhor
registar-te a 4 ou a 6, mas ela disse que se nasceste a 5 de Outubro, era a 5
de Outubro que eras registado… Ainda havemos de partir à aventura para aquele
mundo espectacular, vais ver…” Francamente, ficara com a
certeza de que a mãe o alertara para o perigo das suas mentiras apenas por
despeito, mas agora mudara de opinião e achava que o pai era, de facto, um
grande mentiroso, ainda que trapalhão… |
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© DANIEL FALCÃO |
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