Autor

Ribeiro de Carvalho

 

Data

16 de Setembro de 1988

 

Secção

O Detective [56]

 

Competição

2ª Supertaça Policiária - Cidade de Almada

Problema nº 5

 

Publicação

Jornal de Almada

 

 

POR FAVOR A MORTE

Ribeiro de Carvalho

 

Aquele tinha sido um período mau. Bebia mais do que o costume, fumava mais do que o costume, andava mais frustrado do que o costume.

Praticamente passava o dia sem fazer nada. Sentava-me à secretária com a garrafa ao pé e bebia. Ia à janela e bebia. Lia e bebia. Nem sequer com Ana que é meu sossego, minha paz, minha calma, eu descansava. Faltava-me o trabalho e acima de tudo faltava ganhar coragem para definir ou redefinir qual era exactamente a minha situação. Foi de facto um período mesmo mau.

A chegada do padeiro veio diminuir toda esta tensão.

Todos os dias por volta das sete da manhã, o padeiro ia de porta em porta entregar o pão. Algumas das suas clientes vinham esperá-lo, enquanto que outras deixavam o saco à porta. Ora acontece que quando tinha ido a casa da D. Celeste para pôr o pão no saco, verificara que ainda lá estava o do dia anterior e isso era muito estranho e nunca acontecera.

Quando o padeiro foi comunicar esta situação, que só vim a saber mais tarde, eu não estava. Tinha ido a casa de Ana e foi lá que recebi o telefonema. Trabalho é trabalho e sem vontade nenhuma, até porque me doía a cabeça, lá fui.

Era a primeira casa de uma fila de cinco, numa das variantes que davam acesso à cidade. Foi fácil encontrá-la. Bastou-me ver um dos nossos carros à porta. Era uma casa de rés-do-chão, como todas as outras. E como todas as outras, as traseiras davam para um campo abandonado. A frente encostava à estrada, enquanto que à esquerda continuavam as casas e à direita ficava novamente o campo. Um muro com uma altura aproximada de metro e meio rodeava o terreno, excluindo a frente e estava a uma distância uniforme de três metros da casa. Do outro lado da estrada, ficava um largo, com meia dúzia de barracas de ciganos.

Vizinhos e ciganos encontravam-se à entrada, curiosos. Entrei e Jorge veio ao meu encontro. Jorge era o meu braço direito. Olhei em volta. A casa encontrava-se decorada com gosto e luxo. A vítima devia ser uma pessoa de posses. Na sala, estava a morta. Sentada no sofá, inclinada para o lado direito, tinha dois buracos de bala na barriga, enquanto que no chão e no vestido o sangue se encontrava já seco. Devia ter sido bonita. Mas agora, nem por isso. O rosto tinha uma forma estranha. De espanto, de medo, como se não esperasse o que lhe aconteceu. No chão havia uma chávena vazia, um pires e uma mancha arredondada notava-se na alcatifa. Em frente havia um sofá individual e, ao lado dos dois, uma pequena mesa com uma chávena usada, um bule ainda com chá, um pires, um cinzeiro com duas beatas de «Português Suave» e uma carteira de fósforos com somente seis fósforos arrancados do lado esquerdo. O pessoal do laboratório ia ter muito que fazer.

Entretanto, Jorge ia-me informando. Quando chegaram, notaram que uma das janelas que dava para as traseiras estava aberta, com os vidros partidos, no lado de fora. Entraram por ela, mas tiveram de rebentar a fechadura da porta, porque não encontraram a chave. Passaram revista à casa. Não encontraram nada de anormal, excepto o facto de não haver dinheiro em nenhum lugar o que, diga-se, não se pode considerar anormal.

Cá fora encontrava-se ainda a vizinhança, ouvidos e olhos atem-tos, satisfazendo a sua curiosidade mórbida. E a cabeça que me doía cada vez mais. Calmamente, dei a volta à casa. Debaixo da janela partida, encontravam-se os vidros. Um deles tinha uma pequena mancha. De sangue, talvez. Mais trabalho para o laboratório.

As duas horas seguintes foram passadas a interrogar os vizinhos, não sem antes o médico me dizer que a morte tinha sido causada pelas balas disparadas a uma distância de metro e meio a dois metros (era a distância que separava os dois sofás), dois dias antes, provavelmente no domingo à noite. Só poderia ser mais rigoroso no fim de um exame mais profundo. Pois que se faça o exame!

Quando acabei, já era de noite. Regressei a casa sem ter passado por Ana. A cabeça parecia querer rebentar e tinha uma vontade louca de beber. Já sabia que o dia seguinte ia ser de arromba e precisava de ganhar forças. Bebi. Mas a morte de Celeste não me saía da cabeça. Tinha arrendado aquela vivenda há dois anos e desde logo ela e a vizinha do lado (que curiosamente não fazia parte do grupo de curiosos) se indispuseram. Nem se falavam. Mas segundo as outras vizinhas, Celeste era simpática. Não trabalhava. Não precisava. Era visitada assiduamente por Carlos de Almeida que, segundo as más-línguas, a tinha por conta. Não me admirava. Aliás, já poucas coisas me causavam admiração. Carlos de Almeida era um advogado rico que, quando foi deputado, causara um certo escândalo, logo abafado, quando uma jovem de quinze anos exigira que ele reconhecesse a paternidade do filho. Rico, bem relacionado, resolvera o problema mas tivera de deixar de ser deputado e retira-se para a minha cidade. Casara bem, com uma senhora rica, distinta e marquesa e desde então não se tinha ouvido falar dele. Bebi.

Quando acordei senti-me cansado, com a boca seca. Tomei duas aspirinas, um banho de imersão bem quente e fui visitar Matilde, a vizinha do lado.

Ela não estava. Tinha ido levar o filho à escola. Resolvi esperar e, entretanto, fui vendo os ciganos. Sentados no chão, as mulheres preparavam o comer ou catavam os miúdos, enquanto que os homens sentados em círculo, jogavam às cartas. Olharam para o carro, para mim e depois voltaram ao jogo, menos um que se levantou e entrou numa das barracas. Os miúdos, eram como todos os miúdos. Jogavam à bola, andavam de bicicleta, tinham feito um baloiço de um pneu velho e entretiam-se. Finalmente, Matilde chegou.

Quando me identifiquei, teve um movimento instantâneo de recuo e, submissamente, foi respondendo. Soubera da morte da vizinha no dia anterior. No domingo não tinha estado em casa. Saíra com o marido e o filho e só regressara por volta da meia-noite. Não ouvira nenhum barulho estranho e não se dava nem bem nem mal com a vizinha. Sabia que ela andava com o Dr. Carlos de Almeida, mas isso não era da conta dela. Pensava que não havia nada entre o padeiro e ela, mas não podia garantir. Enfim, as declarações que já se esperavam.

Tinha-me despedido e preparava-me para ir embora quando chegou Alfredo, um dos vizinhos. Disse-me que no domingo à noite estava num dos anexos traseiros da sua casa quando vira uma pessoa a afastar-se do muro de Celeste, pouco antes da luz da casa dela se apagar. Não tinha a certeza porque não se via bem, mas parecera-lhe um dos ciganos. Não ligara muita importância porque era habitual os ciganos irem para aquele campo fazer as suas necessidades e por isso só naquele momento, quando me vira, é que se lembrara.

Podia não ser nada mas também podia ser alguma coisa. Neste ofício tem de se ligar a tudo e já que estava ali, iria falar com eles. Não tenho nada contra os ciganos. Só que têm um modo de viver que não se adapta ao meu, mas não tenho preconceitos. Cada um é livre de viver como quer e desde que aceito as regras. De resto, parece que têm a violência no sangue e eu não gosto muito de me imiscuir nos seus negócios. Dirige-me para os jogadores e à medida que me ia aproximando, as mulheres e as crianças começaram-se também a mexer na minha direcção. Não gostei disso e o coração começou a bater mais depressa. E então quando perguntei se tinham visto alguma coisa no domingo à noite… As mulheres começaram a chorar e a gritar que os ciganos eram sempre os culpados, que eles só queriam viver em paz e que não os deixavam, que não tinham culpa nenhuma, tudo entremeado com braços no ar e repelões de cabelos. Não vi motivo para tamanha algazarra e os jogadores também não. Um deles levantou-se e quando deu uma bofetada numa, todas se calaram. Disseram-me então que não notaram nada de anormal. Só tinham visto um «Renault-16» parado em frente da casa mas que era habitual ele lá estar.

Eu conheço-os. Já não iria conseguir saber mais nada, por isso regressei ao meu gabinete.

Havia novidades do laboratório. A morte tinha ocorrido entre as vinte e uma e trinta e as vinte e duas e trinta de domingo e sido provocada pelos dois tiros. As únicas impressões digitais que havia eram da morta, no bule, no pires e na chávena caída. Nada na outra chávena, e pires nem na carteira de fósforos, nem nos cigarros. No pedaço de vidro que tinha apanhado, notavam-se uns pequenos pelos de fibra e uma pequeníssima mancha de sangue. Nada que me pudesse ajudar muito.

Dei indicações a Jorge para arranjar elementos sobre Carlos de Almeida e verificar se havia algum cigano a gastar mais do que o costume e voltei a sair.

Os ciganos tinham os seus sítios habituais e não ia ser muito difícil a Jorge verificar o que se passava. Dirigi-me à quinta onde morava Carlos de Almeida. A quinta era grande e pertencia à mulher. Quando cheguei à entrada, pareceu-me ver afastar-se de motorizada o ciganos que vira entrar na barraca. Se fosse ele, era estranho o que fazia ali. Ainda pensei em ir atrás dele, mas afastou-se rapidamente e perdi-o de vista, Encolhi os ombros e passei o portão.

A casa era grande e vistosa. Era mais um palacete que uma casa normal. A criada mandou-me entrar e fez-me esperar. Passados uns minutos, entrou, não Carlos de Almeida, mas a mulher, Cristina Margarida. Já a conhecia de vista. Naturalmente, os meios em que vivíamos eram diferentes. Era uma senhora impressionante. Uma senhora com S grande. Calma, digna, de grandes olhos pretos tristes. Tudo nela indicava uma forte personalidade que só se alterava quando falava do marido. Então havia um misto de amor, de protecção, de medo, de tristeza, como se ela fosse simultaneamente protectora e protegida. Disse-me que o marido linha saído mas que não se devia demorar. Contei-lhe o que se passava, embora não dissesse nada das relações do marido com Celeste mas, ou ela já sabia ou depreendeu que havia qualquer coisa porque, categoricamente, disse-me que nunca poderia ter sido o marido, pois que este tinha ido no domingo à tarde para Lisboa e só tinha regressado ontem à noite. Ela conhecia a vítima e embora não fossem amigas, tinha muita pena porque falaram três ou quatro vezes e achara-a muito simpática. Pegou numa boquilha e meteu-lhe um cigarro. A senhora devia estar a perder a calma pois que precisou de três fósforos para acender o cigarro com a mão esquerda. Reparei que o tabaco era «Português Suave»! Isto podia não significar nada. Há muita gente que fuma desta marca, eu inclusivé. Garanti-lhe que não havia nada contra ele e ali ficámos calados durante uns longos, muito longos minutos. Era embaraçosa esta situação. Eu não sou bom conversador e não sabia que conversas ter, de tal modo que comecei a despedir-me. Nessa altura chegou o marido.

Alto, louro, simpático, era o protótipo da pessoa de sucesso, em todos os domínios. Não gosto desta gente. Não me perguntem porquê mas esta aversão visceral é já de há muito tempo. Acho que não consegui esconder este sentimento, porque a cara dele fechou-se por momentos quando começámos a falar. D. Cristina pediu desculpa e retirou-se, fazendo-me prometer que logo que soubesse alguma coisa lhe iria dizer. Carlos de Almeida disse-me que tivera conhecimento hoje, quando fora ao café, do que acontecera. Perguntei-lhe quais eram as relações com a morta. Respondeu-me que eram simplesmente bons antigos. Não tive pena e insisti. A muito custo lá confessou que eram íntimos amigos. Também ele fumava «Português Suave»! Disse-me que tinha ido para Lisboa no domingo à tarde tratar de negócios e que só tinha regressado ontem à noite. Embora tivesse um «R-16» tinha ido no outro carro, um «Peugeot». O «R-16» ficara na garagem. Depois de alguma discussão, lá se convenceu a não sair da cidade até eu autorizar. Não me pareceu nada triste com a morte da amiga. Não há dúvida. Não gosto dele, pronto!

Vim-me embora, aborrecido. Quando tenho de conversar com alguém de que não gosto, é certo e sabido que fico com o dia estragado. E além disso, tinha adiantado muito pouco. Quando ia a entrar para o carro, vi o «Peugeot» arrancar guiado por D. Cristina. Estava farto de andar a correr de um lado para o outro sem ver nada claro. Estava farto!

Sentei-me no café e fui bebendo umas cervejas enquanto lia o jornal. Vinha a falar do crime, mas nada de referir o senhor doutor. Decididamente, o dinheiro e o prestígio tinham muita importância. E a mim fazia-me sede.

Antes de regressar a casa, decidi passar pelo padeiro. Mais por alívio de consciência do que por outra coisa. Acho que fui um bocado rude. Mas estava chateado e ele também tinha um «R-16». Dez minutos depois, tinha-me dito que nunca tivera nenhum interesse em Celeste, que se alguém dissesse o contrário estava a mentir e que no domingo à noite estivera a trabalhar na sua padaria, a cozer o pão que ia vender na segunda-feira.

Fui-me embora para casa.

No dia seguinte, Jorge apareceu-me com as informações que tinha recolhido. Quanto a Carlos de AImeida, soubera que ele estava de novo em ascensão dentro do partido graças à influência da família da mulher e que se falava em voltar a ser candidato às próximas eleições e possivelmente um dos deputados do Parlamento Europeu. Em relação ao cigano, mandara correr todos os bares e cafés. Num deles, encontraram uma prostituta que dissera que na segunda-feira tinha andado com um cigano, que era seu cliente habitual, que gastara mais do que o costume e lhe mostrara um gordo maço de notas. Quando ela perguntara onde é que ele tinha arranjado o dinheiro, o cigano respondera que tinha sido dum negócio. Andavam agora à procura do cigano.

E fez-se luz naquele instante.

 

PERGUNTA-SE:

a) – Quem assassinou a Dona Celeste?…

b) – Justifique a sua dedução apontando em pormenor todo o desenrolar do caso, incluindo o móbil do crime e modo de actuar dos personagens mencionados na história.

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO