Autor Data 5 de Março de 2017 Secção Policiário [1335] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2017 Prova nº 2 (Parte I) Publicação Público |
TRUFAS E MORTE Rigor Mortis O
jantar estava magnífico. Edgar, o mordomo, fora impecável a organizá-lo, como
sempre. Na sumptuosa sala de jantar da mansão ribatejana do patrão, de imponente
pé direito, a sólida e longa mesa rectangular de
mogno estava luxuosamente posta, a ementa era excepcional,
os vinhos espectaculares, o serviço inexcedível. A
mansão passava o ano fechada, isolada, a uns três quilómetros da aldeia mais
próxima e a uma hora de automóvel de Lisboa, já que a família só lá ia para o
jantar de aniversário de Jeremias, o seu proprietário. Semana e meia antes o
Edgar e vários criados tinham ido até lá, para limpar tudo cuidadosamente e
preparar a casa para esse jantar, como faziam todos os anos. Nesses dias
estivera sempre gente em casa, mesmo à noite, com excepção
do domingo anterior à tarde, dois dias antes do jantar. Só o Jeremias, os
seus três filhos e o Edgar tinham a chave da mansão. Os dois filhos mais
velhos, Alberto e Sofia, tinham lá ido durante as limpezas, separadamente,
mas não se tinham demorado mais do que uma ou duas horas. Catarina, a mais
nova, detestava a mansão. Jeremias,
sentado ao topo da mesa, nem ligava a isso. Não apenas porque já a tal estava
habituado, como porque a sua natureza autoritária e egocêntrica nem outra
coisa alguma vez toleraria. À
volta da mesa, mais nove pessoas. À direita e à esquerda do Jeremias, as suas
duas irmãs cinquentonas, por quem ele não sentia mais que uma leve
condescendência. A seguir, os respectivos maridos,
imprestáveis na sua opinião. Depois, os dois sobrinhos, por quem Jeremias não
sentia a mais leve simpatia. E no outro extremo da mesa os seus três filhos,
Alberto, Sofia e Catarina, a meio da casa dos vinte anos, tal como os primos. Jeremias
casara tarde, bem dentro dos cinquenta, com uma linda mulher trinta anos mais
nova, Genoveva. Três filhos em três anos, todos com gravidez muito
complicada, tinham dado cabo da saúde da esposa, que viria a falecer ao dar à
luz Catarina. Esses três anos tinham sido vividos na mansão ribatejana, tal
como os doze seguintes, até que Jeremias se mudara para Lisboa. Numa
acusação semiconsciente, Jeremias desprezava os filhos, que tratara sempre
com uma rigidez e aspereza impossíveis de suplantar. O desprezo de Jeremias
pelos filhos era retribuído com o ódio destes, que não esperavam outra coisa
senão a sua morte e a correspondente herança, sabidamente enorme. Não
obstante, as três crianças foram crescendo, revelando-se inteligentes e hábeis
de mãos. Num ambiente de todo sem características familiares, viraram-se para
os estudos – Alberto licenciou-se em Direito, Sofia em Engenharia, Catarina
em Economia – partilhando permanentemente um gosto acentuado por tecnologias,
sobretudo electrónicas. Alberto e Sofia tinham-se
distinguido nos desportos, durante o liceu e a universidade, Catarina fora
sempre franzina e muito feminina, cuidada na sua aparência ainda que
independente, afirmativa, determinada e de personalidade forte. Sofia, de
muito maior estatura, era esbelta e musculada, consequência da intensa
prática desportiva, nada dada a valorizar a sua feminilidade. O
ambiente era muito pesado. Como sempre, nos jantares de aniversário do
Jeremias, única altura em que este se dignava conviver com a sua família. “Magnífico consommé! O Edgar levou a
cozinheira a exceder-se!” O pensamento sobrepunha-se ao pano de fundo do
ódio pelo pai. A
conversa à volta da mesa, esparsa, centrava-se nos elogios ao repasto. –
Sinceramente, Edgar, este é o melhor jantar de sempre! – elogiou
uma das irmãs do Jeremias. –
Podes crer! – corroborou o cunhado. “Lá isso é… E desta vez ele abriu mesmo os
cordões à bolsa… Risoto de trufas brancas com camarão!... Só este prato deve
ter custado mais de mil euros… Que lhe terá passado pela cabeça?! Será que
ele desconfia de alguma coisa?... De mim, ou dos
meus irmãos?...” O
prato de carne, rosbife com puré de alcachofras, estava simplesmente divinal. –
Que maravilha! – comentou um dos sobrinhos do
Jeremias, logo secundado por todos os outros convivas. Todos
menos o Jeremias, claro, silencioso e soturno como sempre. “Ai estas tias… Vê-se bem que nasceram e
cresceram no século passado… É só rendas, folhos e receitas… Hoje não
sobreviveriam na adolescência! Seriam levadas pelo primeiro que lhes
aparecesse à frente! Felizmente, uma mulher hoje é muito mais que roupas e
culinária!” A
sobremesa excedeu tudo o que lhe tinha antecedido. Trufas de chocolate
recheadas com maracujá, deliciosas, crocantes mas que se derretiam
simplesmente na boca. Mais uma vez, os elogios. “Mais trufas, agora doces… É o momento!” O
disparo sobressaltou todos à volta da mesa. Sangue apareceu na face do
Jeremias, brotando do buraco que se abrira do seu lado esquerdo. Imóvel
durante uns segundos, com a cabeça encostada ao espaldar da cadeira, o tronco
do Jeremias curvou-se lentamente para a frente, caindo desamparadamente sobre
o prato da sobremesa, esmagando os restos das trufas de maracujá. ------------ O
inspector João Velhote, de pé em cima da mesa de
jantar, com os pendentes mais baixos do imponente lustre que iluminava a sala
a centímetros da cabeça, mirava com curiosidade não disfarçada a engenhoca
que descobrira aí camuflada, fixa ao seu eixo central. Uma pequeníssima
pistola cromada estava habilmente disfarçada pelos ramos do lustre. Ao
gatilho estava preso um fio metálico, com a outra extremidade soldada a um
êmbolo, semi-envolto por um solenóide
colado de lado na coronha da arma, ligado a uma pequena pilha através de um
minúsculo circuito electrónico. Uma pequena antena
era visível na base do conjunto. A pistola, de um único tiro, estava directamente apontada à parte superior da cadeira onde
Jeremias estivera sentado ao jantar. Velhote
tinha tido a inspiração de procurar no lustre quando o seu ajudante lhe
levara uma outra engenhoca, descoberta no caixote do lixo, na cozinha, que
era manifestamente um emissor de sinais electrónicos
de reduzidas dimensões, aparentemente um comando de porta de garagem. Dos
interrogatórios, João Velhote ficou a saber de todos os pormenores quanto à
mansão, à sua preparação para o jantar, ao decorrer deste e ao que era
relevante relativamente a cada um dos membros da família. Facilmente entendeu
que Jeremias não era estimado por nenhum deles. O único que tinha
consideração por ele era o Edgar, mordomo de sempre. As irmãs e as respectivas famílias directas
suportavam-no apenas, já que não tinham que conviver com o Jeremias senão uma
vez por ano. Os filhos odiavam-no claramente. Os três tinham estado em Lisboa
nas últimas semanas, mas só se tinham encontrado no domingo anterior,
almoçando juntos. Nessa tarde Alberto e Sofia tinham ido ver um jogo de
râguebi da antiga equipa do Alberto, mas Catarina preferira ir ao cinema. O
inspector João Velhote estava de mau humor. O seu
tique habitual, mordiscando o lábio superior e expondo os incisivos
inferiores por baixo do bigode grisalho, manifestava nesse momento
consternação e preocupação. Tinha todas as razões para crer que sabia quem
tinha sido o assassino, mas prová-lo iria ser muito complicado. A pistola, a
engenhoca associada e o comando de garagem, que se tinha verificado estarem
limpos e sem quaisquer impressões digitais, eram as suas únicas pistas
materiais. Descobrir onde e quem os teria adquirido iria ser o cabo dos
trabalhos. Encontrar alguém que tivesse visto um dos familiares do Jeremias
ir à mansão noutra altura que não àquele jantar seria igualmente muito
difícil. ------------ E
você, caro Leitor? De quem suspeita? Não basta um
simples palpite… Analise as circunstâncias e junte as pequenas evidências,
justificando a sua resposta com plausibilidade. |
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© DANIEL FALCÃO |
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