Autor Data 10 de Setembro de 2018 Secção Competição Prova nº 3 Publicação Audiência GP Grande Porto |
AS TRÊS POLTRONAS Rigor Mortis João Velhote dirigiu-se à
porta da enorme vivenda vitoriana, onde o esperava um homem alto, vestido de
cinzento-escuro, na casa dos sessenta anos. – Boa tarde – disse o
homem. – É o senhor inspetor da
Polícia? – Inspetor João Velhote. Foi
você que chamou a Polícia? – Sim, inspetor, fui eu. Sou Antero Rodrigues, o curador desta mansão,
sede do War Veterans British Club. Acompanhe-me, por favor. Atravessando o hall de entrada e percorrendo um longo corredor, chegaram
a uma sala ampla, com mobiliário escasso mas rico. Cada uma das paredes
laterais tinha duas portas, uma delas marcada com um
discreto sinal WC. À frente, uma portada de enormes proporções, de painéis de
vidro, virada para o não menos magnífico jardim das traseiras. No centro da
sala, a uns dois metros da porta para o jardim, três poltronas de cabedal de
espaldar alto e amparos de cabeça, uma de frente para o jardim, as outras
paralelas a este, uma de cada lado da primeira, sobre um espesso tapete
oriental. À direita de cada poltrona,
uma mesa de apoio, cada uma delas com um copo cheio e uma tacinha com
amendoins, duas delas com revistas e jornais em cima. Na poltrona da esquerda
estava um corpo de homem, ensanguentado, com o tronco caído sobre os joelhos.
No chão, à frente, uma pistola com silenciador. Atrás, aos pés da mesa de
apoio, duas revistas e folhas soltas de jornais, meio amarrotadas e
espalhadas no chão. Bastante sangue no tapete, ao centro entre as três
poltronas. Observando o cadáver, Velhote notou um orifício de bala na testa,
logo acima dos olhos. Na nuca, também ao centro, outro orifício. Intrigado, o
inspetor não encontrou nenhum projétil incrustado nessa poltrona. Mas,
levantando os olhos para a que estava em frente, viu logo o buraco deixado
pela bala, à altura da cabeça. – Conte-me lá, senhor
Rodrigues… – convidou o inspetor. – Bom… Aquele é o senhor
Luís da Mata, um dos quatro sócios fundadores do clube. Os outros foram os
senhores António de Carvalho, Carlos dos Santos e Lord George Kelvin, barão
de Windlecroft. Lord Kelvin faleceu há quatro meses.
Milionário, solteiro e sem descendência, foi ele quem adquiriu este terreno e
mandou construir esta mansão, há uns cinquenta anos, para ser sede do clube.
Ao falecer, deixou toda a sua fortuna ao clube, garantindo a sua preservação
com os padrões que lhe conferiu. Os quatro combateram na 2ª Guerra Mundial,
no mesmo Regimento, tendo sido condecorados por atos heroicos no Extremo Oriente,
na luta contra os Japoneses. Segundo sei, os três portugueses salvaram a vida
de Lord Kelvin numa terrível batalha na Indochina. – O clube tem agora dez
membros, hoje nonagenários. Todos vêm cá regularmente, mas os três senhores
que mencionei estão cá todos os dias. Chegam a meio da manhã e sentam-se nesta
sala, lendo os jornais e revistas do dia até à hora de almoço. Almoçam aqui
no clube, rigorosamente às 13h, e só saem a seguir, pelas três ou quatro da
tarde. O senhor António senta-se sempre precisamente na poltrona onde está o
corpo do senhor Luís, que se costuma sentar na poltrona oposta. A do meio,
virada para a porta, é sempre ocupada pelo senhor Carlos. – Embora tenham sido no
passado grandes amigos, certamente por terem estado juntos em situações muito
difíceis, não se falam desde que o barão morreu. Travaram-se de razões, julgo
que por cada um deles entender que Lord Kelvin não lhes deixou a sua fortuna
devido aos conselhos que os outros dois lhe tenham dado. – Luís da Mata sentava-se
por vezes na poltrona onde está o corpo? – perguntou
o inspetor. – Nem por sombras! Nenhum
deles se sentaria noutra que não fosse a “sua” poltrona! Nem toleraria sequer
que qualquer dos outros se sentasse na “sua” poltrona! Ou que tocasse num
objeto “seu”! – Têm sido pessoas
saudáveis? – Nunca os vi doentes, nem
mesmo com uma gripe. São fisicamente muito fortes e mantêm toda a sua lucidez
e inteligência, apesar dos noventa e tal anos que têm! – A pistola que ali está, era do senhor Luís da Mata? – Não senhor. É do senhor
Carlos, que a tem guardada, bem como o silenciador, no seu armário privado
aqui no clube. Antes que me pergunte… Cada membro tem um armário privado no
clube, fechado com cadeado, onde pode guardar o que bem entender. Todos os
armários estão no corredor para onde dá aquela porta – Antero apontou para o
lado esquerdo. – Os cadeados são normais, mas as chaves estão todas na posse do
membro proprietário. Acontece que o senhor Carlos, tal como o senhor António,
costuma por vezes praticar tiro num local que temos para o efeito e, por
isso, vi muitas vezes um e outro com a respetiva arma. O uso do silenciador é
uma imposição, para não perturbar os outros membros do clube. – Hoje, estavam aqui os
três? – Chegaram pelas 10h, como
sempre, e sentaram-se nas suas poltronas, onde passaram a manhã. Servi-lhes
os aperitivos habituais às 12h30, como faço todos os dias – Gin e tónica, nunca bebiam outra coisa. Nesse momento o
senhor António levantou-se e foi à casa de banho, àquela ali à esquerda. Uns
minutos depois, quando eu regressava à cozinha, foi o senhor Carlos que se
levantou e foi também à casa de banho, mas àquela ali do lado direito. O
senhor Luís manteve- se sentado, a ler o jornal em silêncio. Devo dizer que
este cerimonial era repetido todos os dias, sem exceção – os dois senhores
ficavam um bom quarto de hora na casa de banho. – Às 13h voltei para os
chamar para o almoço e deparei com esta cena… Fiquei tremendamente chocado,
como compreenderá! – E os outros dois
senhores? – Quando aqui cheguei não
estavam na sala, nem nas casas de banho. Encontrei-os na varanda da sala de
jantar e contei- lhes da morte do senhor Luís, logo antes de telefonar para a
Polícia. – Muito bem… Obrigado pela
sua minuciosa descrição… Chame lá os outros dois senhores, porque quero falar
com eles, naturalmente. Ainda que julgue já saber o que aqui aconteceu… |
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© DANIEL FALCÃO |
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